quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

[3] Minhas 4 horas no Marrocos - Marrocos

Não resta dúvida que viajar é mais que fazer turismo; é uma mudança contínua, profunda e permanente no conceito que temos da vida
Miriam Beard


Comecei a descer a Espanha no sentido sul (depois seguiria do sul para o norte por Portugal e então do oeste para o leste pelo norte da Espanha) e à medida que ia encontrando outras pessoas elas me alertavam sobre a beleza de Marrocos, a saborosa comida, o preço convidativo e ainda que estava tão próximo... Além de tudo isso andaria de navio pela primeira vez e afinal de contas conheceria um país da África !

Alguns também me alertavam que viajar sozinho para lá poderia não ser uma boa idéia, que talvez devesse ir através de uma agência (e abandonar minha filosofia de não pagar as tais taxas administrativas que tanto encarecem as viagens ?), que havia muitos hustlers - pessoas que lhe abordam tentando carregar-lhe para um hotel, lojas e restaurante - fazendo com que gaste o máximo de dinheiro possível – enfim, que a África não se parecia em nada com a Europa.

Mas, vocês imaginam, fui passsando por tantas situações que a segurança ia aumentando e ia se tornando difícil acreditar no que falavam sem comprovar: fui. Já no navio, passando pelo estreito de Gibraltar, ia desfrutando da viagem e pensando no que me aguardaria. Mal sabia eu...

Tanger, quinta-feira, 07/09 14:00 hs
Logo ao sair do navio já podia avistar os tão falados hustlers e não estranhei quando uma pessoa já veio me abordar com um inglês de tirar o chapéu para quem nunca havia saído do Marrocos. Já fui me desvencilhando, falando que já tinha lugar para ficar, etc. Mas muito gentilmente ele foi me enrolando e, de repente, já havia um táxi à nossa frente. Durante o trajeto até o táxi ele usou uma tática pela qual jamais poderia esperar. Disse que fazia parte do albergue e que eles tinham um trabalho de recepção aos jovens no porto. Disse que aqueles hustlers - apontando - contribuíam para passar uma imagem ruim do Marrocos e que eles tinham todo um trabalho para evitar aquilo. Antes de entrar no táxi ainda perguntei:
-Pera aí, qual é o endereço ?
Ele respondeu. E bateu, o endereço era mesmo aquele. De qualquer forma teria que recorrer àquele luxo, pegar um táxi, que até então não havia usufruído, porque ali seria complicado obter informações sobre ônibus, além de que esse transporte particular naquele local era barato. Fomos. No caminho fui percebendo a barra pesada que seria eu caminhar naquele meio com a indisfarçável cara de turista, e o medo foi aumentando, e as recomendações para que não fosse sozinho vinham à minha cabeça. O albergue estava fechado (é costume neste lugar fechar o albergue cerca de três vezes ao dia por algumas horas) mas meu "amigo" dobrou o cara e pude ao menos deixar a mochila. Depois de todo aquele cenário, somado ao fato de que não poderia ficar no albergue naquele momento, me vi quase na obrigação de aceitar o convite daquele marroquino para "dar uma volta". Queria a todo custo me arrastar para um café mas disse que estava com fome e que o que precisava era comer. Ele todo simpático ia fazendo minhas vontades com muita camaradagem. Perguntei antes quanto seria, pois era estudante, blá, blá, blá. E ele disse que lá teria um menu com vários preços. O caminho até o restaurante foi chocante, mesmo para um brasileiro. Todo aquele burburinho em árabe, aquelas figuras com turbantes, gente vendendo dos mais estranhos produtos nas calçadas, adolescentes e crianças sentados sem fazer nada, sujeira pela rua, becos indecifráveis, um cheiro indescritível e inesquecível. Chegamos ao restaurante, e lá comecei a perceber a fria que tinha me metido. O menu só indicava um preço, um preço exorbitante para Marrocos, quase $10 ! Falei que não queria comer ali, que o preço estava alto demais para mim, mas o cara começou a ficar visivelmente hostil e percebendo a cobra que surgia ao meu lado comecei a temer pelo restante do meu dinheiro, e portanto de minha viagem pela Europa, que ainda não estava nem pela metade. Resolvi adotar uma outra tática, talvez a única possível, fingir que ele era realmente meu amigo e que eu era realmente o turista otário que ele procurava. Além do mais estava com fome mesmo e aquela comida, pelo menos, era realmente típica. Aceitei comer lá. E a medida que aquela exótica comida descia por minha garganta ia pensando como fazer para sair daquela. Naquela cidade não poderia ficar sozinho. Isso seria continuar pondo em risco todos os meus planos. Estava ali naquele restaurante, naquela terra estranha, com um potencial ladrão ao meu lado, sem ter como comunicar com ninguém, em meio a um cenário de muita pobreza e totalmente sem referências de onde estava. Via crescer ali meus limites. Tentava colocar em prática todo uma experiência inconscientemente adquirida ao longo desses meses no exterior, tentar manter a calma, afastar o calor dos acontecimentos e tomar uma decisão sensata, mas tenho que dizer que não foi fácil. Estava diante de uma situação totalmente nova e inesperada e me questionava até onde teria que ir essa procura pela experimentação do desconhecido. Um misto de impotência, medo, insegurança tomava conta de mim, sem falar na raiva. Raiva, porque embora às vezes pensasse que tivesse que fingir ser um babaca, também vinha a minha cabeça que talvez isso não fosse necessário, pois já estava naturalmente o sendo. E a comida ia descendo, o tempo passando... Acabei e pedimos a conta. Paguei. Não posso descrever o que senti quando vi metade do dinheiro que paguei ser entregue àquele marroquino salafrário. Mas àquela altura já tinha mesmo decidido que o menos arriscado seria realmente me "comportar" como uma vítima. A próxima parada seria uma loja de tapetes e souvenirs marroquinos. Chegando lá ele foi logo me dizendo que havia uma vista belíssima no topo e após pedir permissão ao dono da loja falou que eu poderia subir e tirar algumas fotos. Não tinha muitas alternativas e pensava que mesmo sentindo tanta coisa ao mesmo tempo teria que tentar tirar algum proveito da situação. Subia, e a cada degrau imaginava que a qualquer momento alguém surgiria daqueles cantos escuros, me ameaçaria e me roubaria todo o dinheiro, e na melhor das hipóteses ficaria por aí. Cada degrau subido era como uma batalha vencida contra o medo. Luz, alívio, surpresa. Realmente a vista era fantástica. Mar, casas humildes nos morros, o porto, parecia que avistava a toda Tanger em conjunto. Ainda desconfiado tirei a câmera da mochila e sem muita demora, tirei as três fotos mais caras de toda minha viagem. Em seguida aproveitei o momento sozinho para separar três notas em dólares das demais. Uma de $5, uma de $10 e uma de $20 e desci. O dono da loja começou a desenrolar em minha frente todos os tipos - muito belos por sinal - de tapetes. Eu, constrangido e sem muita tranqüilidade, tentava de todas as maneiras dizer que não os poderia comprar e que parasse com tanto trabalho em vão. Finalmente consegui me liberar, enfrentando hostilidade de novo. Saímos. Pedi educadamente ao marroquino que me levasse até ao albergue. E então veio o esperado.
-Agora você tem que me pagar.
Já estava preparado (separação das notas) e fui logo dizendo que como era estudante... poderia dar-lhe $5.
-Só isso, não !
-Cara, tome $10, vamos pro albergue - eu repliquei.
-Não, essa nota está manchada, me dá aquela de $20, que te dou o troco.
Nessa hora só pensava no restante do meu dinheiro e já não me importava com mais nada, além de sumir do lado daquele cara. Saiu por $15. Durante o caminho já pouco conversávamos. E depois de passar por parte daquele cenário exótico de novo ele disse:
-Você tem que me dar mais $5.

Permaneci calado fazendo uma expressão de desapontamento e evitando olhar para ele. Ele entendeu. Caminhamos mais um pouco e ele disse que não me acompanharia mais e que deveria seguir em frente para chegar ao albergue. Virei-me e parti sem lhe dar mais nada. Para onde ? Não sei. Imaginei que ele poderia ter acertado com alguém para me assaltar naquela região, todo cuidado era pouco. Entrei em outra rua andando muito apressadamente, e as coisas só pioravam. Era uma rua mais movimentada. Muitos vendedores espalhados, desocupados pelos passeios, vestimentas exóticas, murmúrio em árabe, pessoas falando em minha direção. Crianças querendo me tocar. Estava completamente perdido, vivendo meu próprio filme de horror, que naquele ponto, parecia alcançar seu clímax. Entrei em uma loja. Não encontrava de maneira alguma o endereço do albergue e começava a me desesperar. Tudo o que queria era sair daquela cidade. Finalmente encontrei o endereço, apontei-o para o dono da loja mas ele não sabia onde ficava. Saí, mais uns metros de tensão e entrei em outra loja. O dono desta sabia onde ficava, mas a explicação foi incompreensível. Saí de novo e vi uma luz no fim do túnel, um táxi. Fui em sua direção, mas naturalmente, em um dia que tudo dava errado, não cheguei a tempo. Vi outro, este sim. Depois de alguns minutos conseguimos nos entender. Negociamos o preço e acertamos de passar no albergue e depois ir para porto. O encarregado do albergue me xingou por 10 minutos por eu tê-lo acordado, era uma hora que o albergue estaria fechado novamente e me fez pagar a diária. Depois de mais um momento desagradável, peguei minha mochila e fui para o táxi que me deixou no porto. Felizmente a passagem que comprei na Espanha era ida-e-volta e não precisei me preocupar com isso. Vocês podem imaginar que sair da África para a Europa não é o mesmo que o contrário. Muita burocracia. E em uma das três filas que se convertiam em uma, o empurra-empurra era normal. Com meu estado alterado, imaginava que o pior aconteceria e que minha saída seria barrada. Mas finalmente meu pesadelo acabou.

Tanger, quinta-feira, 07/09 18:00 hs
Eu, no navio rumo a Espanha, quatro horas depois de ter chegado ao Marrocos, sentado no navio ao lado de uma loira criteriosamente escolhida (queria ter certeza que não era marroquina) pensando sobre tudo aquilo.

Até hoje ainda penso se aquela teria sido a melhor estratégia e se não teria agido no calor da emoção dos acontecimentos. Se talvez não teria sido melhor resistir e permanecer. Mas, bem, estou aqui seguindo viagem...Conhecer o Marrocos não é algo que está fora dos meus planos, não foi esse azar, causado um pouco pela imprudência, que me fará ignorar tudo de bom que falam daquele país. Mas, sozinho, não !

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