quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

[2] Alegria e tristeza em Cádiz - Espanha

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos.
Fernando Pessoa


Agosto, verão europeu. Faz um calor tremendo na Espanha e, além disso, o ar é bastante seco. Quando deixei Madri e comecei a descer em direção à região da Andaluzia tinha a esperança que o clima fosse se tornar um pouco mais agradável, mas estava errado, na verdade era ainda pior. Foi aí que decidi então, definitivamente, ir a uma cidade na costa da Espanha: Cádiz.

Em meu livrinho com a relação de albergues não constava um nesta cidade e temia ter que me hospedar em um hotel, o que seria um desastre orçamentário, mas deixei para me preocupar com isso depois. Cheguei lá logo pela manhã e mesmo de dentro do ônibus já era afetado pelo bom astral praiano, vendo o mar mediterrâneo, com ares árabes, se encontrar com o continente.

Por uma questão de sorte, comprei uma grande mochila, que além de todas as características que as mochilas para esse tipo de viagem possuem, continha rodinhas. Abençoadas rodinhas que me poupariam de muito esforço ao longo de toda minha viagem. Ali mesmo em Cádiz já ia arrastandoa mala da rodoviária ao centro, em busca de alguma pensão. Encontrei algumas bastante caras o que me fez adiar a continuação da procura para, finalmente, ver o mar de perto. Deslizei a mochila até a praia e fiquei um tempo contemplando o quebrar das ondas e sentindo a suave brisa. Por aqueles instantes tentava esquecer aquele enorme problema que seria encontrar um lugar barato para me hospedar. Àquela altura a cidade já tinha me conquistado e queria realmente passar uns dias ali.

Depois de algum tempo reiniciei a busca, mas decidi dessa vez perguntar. Me indicaram um albergue independente não muito longe dali e então lá fui eu, arrastando a bolsa novamente. O albergue não era dos melhores, e estava lotado. Tanto custo para encontrá-lo e estava lotado, o que faria? Percebendo minha preocupação, uma agradável senhora disse que havia uma saída, dormir no terraço. No terraço ? Terraço... Por que não ? Fechei o negócio, economizaria ainda mais. Subi então várias escadas até chegar à varanda descoberta e qual não foi minha surpresa quando descobri que a idéia não tinha sido nova. Quase uma quinzena de mochilas já estava ali! Mais uma agora. Ajeitei um dos colchonetes disponíveis e fui finalmente curtir a praia sem preocupações.

Tristeza.
Atravessei a cidade observando o estilo inconfundivelmente costeiro e fui caminhar pela areia. As praias não se comparam às brasileiras, mas só o fato de ter vindo de uma Sevilha ardente para sentir aquele vento frio, ouvir o som do mar, enfim, mergulhar naquele clima de descanso que todos à minha volta pareciam desfrutar, já era suficiente. Depois de curtir aquilo por algumas horas reparei numa movimentação estranha, não muito longe. Curioso, continuei caminhando naquela direção. A cara de todos já indicava que boa coisa não seria. Postei-me ao lado deles e depois de algum avanço pude ver, alguns metros abaixo, na areia, um corpo esticado. Era o de um mergulhador ainda parcialmente vestido. Seus pés-de-pato não foram retirados mas a roupa térmica estava semi-aberta. Uma equipe médica estava ao seu redor. Aplicavam-lhe soro, faziam massagem cardíaca e respiração boca-a-boca. O esforço era enorme, enquanto todos especulavam o que teria ocorrido. A única coisa certa é que eram um grupo de três. Os outros dois, já pressentindo o pior, de costas para o homem estirado ao chão, pareciam olhar sobre o mar para o infinito. Talvez estivessem se culpando por terem-no arrastado para as margens tarde demaisou talvez tentando entender o misterioso critério usado para terem sido eles os escolhidos para continuarem vivendo). Passado um tempo, um dos membros da equipe de salvamento estendeu um pano branco sobre o cadáver e todos sentiram duramente aquela batalha perdida, o gesto foi como o de um golpe desferido em nossos corações, o último golpe da foice da morte. O clima ficou ainda mais pesado quando chegaram, em pranto, os pais da vítima, e ainda policiais, e um carro com um caixão. Não havia mais esperanças. Mesmo o sol já descia abaixo da linha do horizonte e deixava que a noite viesse virar aquela página da vida. A última para aquele homem.

Alegria.
Voltei ao albergue e no terraço pude conhecer algumas pessoas. Dentre eles um mineiro que tentava encontrar seu lugar no mundo. Já havia passado por alguns países sendo que o último tinha sido Portugal. A música era o que lhe dava prazer mas confessara já ter feito muitas outras coisas para sobreviver. A medida que conversávamos, mais pessoas iam surgindo no terraço e fiquei muito contente em perceber que o clima ali parecia ser até melhor que nos andares de baixo. Uma roda já se fizera e cervejas regavam as conversas. Uma lua completamente cheia estava bem acima de nossas cabeças o que eliminava a necessidade de lâmpadas. Mais tarde saíram para um bar, mas eu, ainda um pouco abalado com tudo que acontecera naquele dia e também cansado devido à viagem e às horas gastas tentando procurar um lugar para me hospedar, decidi ficar e dormir sob aquela luz lunar.
Acordei no dia seguinte mais animado. Tomei um café reforçado e fui para a praia. Durante aquele dia e o seguinte, um dos meus passatempos prediletos seria observar as chicas e chicos espanhóis se divertindo. A brincadeira deles era bastante simples mas ao mesmo tempo continha uma boa dose de risco. Uma pequena via de concreto, por onde não podiam circular carros, se estendia sobre o mar até uma construção antiga que parecia ser uma espécie de forte. De diferentes pontos dessa via, as crianças reunidas em grupos, se atiravam ao mar. A altura ao longo da passarela era variável, mas só se podia encontrá-las nos pontos mais altos. Pulavam das mais diferentes maneiras. Às vezes sozinhos, às vezes em conjunto e ás vezes uma era escolhida para ser jogada pelos demais. A algazarra era enorme. O curioso era que a profundidade do mar nesses pontos parecia não ser suficiente para amortecer a queda, mas como quem dominasse a técnica há anos, pulavam e imediatamente emergiam. Uma festa que só não podia ser realizada quando a caprichosa maré estivesse baixa, mostrando o chão sob a ponte. Ou quando as aulas começassem, o que não tardaria muito.

P.S.
Entre Madri e Cádiz também gastei uns dias em Córdoba, da maior mesquita da Europa Ocidental, legado dos árabes invasores; e em Sevilha, onde pude assistir a um belo e emocionante espetáculo de flamenco além de contemplar uma esplendorosa Catedral Gótica que ocupa quase um quarteirão.

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