quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

[ 0 ] Prólogo



Antes que se inicie a leitura desses textos há que se tomar conhecimento de alguns pormenores.

A maioria deles foram escritos em Cafés espalhados pela Europa, lojas que, no mínimo, possuíam algum computador conectado à Internet (e cobravam uma boa taxa para o uso desta). À medida que viajava ia tomando anotações e, tão logo fosse possível, me sentava em uma dessas lojas, formulava um texto, digitava-o, para então em seguida enviá-lo para uma série de amigos no Brasil.

Assim, muitas pessoas acompanhavam a minha viagem, que ocorreu entre os meses de Agosto de 2001 e Novembro do mesmo ano, quase que simultaneamente. Os títulos dos textos eram os “assuntos” dos e-mails.

De volta ao Brasil percebi que havia visitado algumas cidades, mas não as descrito devidamente, ou os acontecimentos que nelas se passaram. Deste modo, ainda que 70% desse apanhado seja original, como foi escrito na primeira vez, adicionado apenas de correção ortográfica, existem alguns textos que foram criados no Brasil. As citações logo abaixo dos títulos também não constavam nos textos originais.

Sobre a viagem em si não há muito para ser dito, pois tudo está descrito nos textos, exceto quanto aos preparativos.

O dinheiro para a viagem foi obtido ao longo de uma estadia de um ano nos EUA. A aquisição do idioma inglês nesse mesmo país também contribuiu significativamente para a viagem. Comprei previamente passes de trens no Brasil a preço de estudante, ganhando como brinde um excelente mapa da Europa com todas as rotas de trem que cruzam o continente, o que facilitava o planejamento do roteiro a seguir. Também no Brasil adquiri a carteirinha de alberguista e um livro com a relação dos principais albergues da juventude da Europa. Assim que chegava em cada cidade, antes mesmo de me dirigir ao albergue, ia até algum balcão de informações para turistas – muito comum na Europa – e pedia o mapa da cidade, que vinha acompanhado das principais atrações. Viajei com apenas uma mochila, poucas roupas, que eram lavadas em cada albergue e dois tênis.

Só me resta lhe desejar um bom divertimento. Espero que possa criar em sua imaginação uma atmosfera ao menos parcialmente parecida com a qual passei ou que, na pior das hipóteses, ao menos colha algumas informações que lhe possam servir um dia ou lhe divertir por algumas horas.

Anderson Cristian Padilha

[1] Cerrado por Vacaciones - Espanha


Quem viaja sozinho pode começar a qualquer momento, mas o que viaja com alguém mais tem que esperar até que o outro esteja pronto
Henry David Thoreau

Cerrado por Vacaciones: é essa a frase que se encontra em boa parte dos estabelecimentos comerciais de Madri. Fechado para Férias. A temporada de férias européias compreende os quentes meses de julho e agosto, pois que surpreendentemente, ao menos para mim, reles viajante, nada menos que três quartos dos madrilenos se encontram viajando nessa época, ou seja, três milhões de pessoas. A maioria deles estão provavelmente em refrescantes praias, para as quais, finalmente, em dois dias, eu também me dirijo.

Destas quatro semanas na capital espanhola, três fiquei em albergues, que são em número de três nesta cidade e, agora, (um pouco cansado de pular de albergue em albergue), me hospedei em uma pensão, em um quarto exclusivo. Mas tenho que confessar que esta tem sido a semana menos excitante. Embora não tenha feito, absolutamente, eternos amigos, conheci nestas três semanas uma média de duas a três pessoas ao dia, o que pode lhes dar uma idéia do que uma viagem dessas verdadeiramente significa.

Depois de procurar a embaixada brasileira e obter algumas informações, decidi ficar um pouco mais nesta cidade - de importantes museus como o Prado e o Rainha Sofia, onde se encontram obras de Picasso, Miró, Goya, Dali e Velazques, dentre outros, - e fazer um curso de espanhol intensivo de três semanas. Neste período, além de provar das mais diversas comidas típicas, e saborosas, diga-se de passagem, como paella, bocadillos, tortillas, tapas e a bebida sangria, também fui assistir ao esporte mais tradicional deste país, a tourada. Conheci cidades históricas com mais que o dobro de idade de nosso país, como Toledo e Segóvia, que não estão muito longe daqui.

Toledo é conhecida como uma capital cultural gótica desde o século XVI. É também conhecida como a cidade das três culturas por ter tido a presença dos cristãos, judeus e mulçumanos. Andar por suas ruas é experimentar uma sensação única, e com um pouco de imaginação não é difícil se transportar para a Idade Média, envolvido pelo clima da cidade.

Segóvia é igualmente surpreendente. Além de abrigar a última catedral gótica construída na Espanha, contém também o não menos estrondoso Alcazar (castelo) e ainda, para mim um dos marcos dessa viagem, o Aqueduto. O Aqueduto foi construído no século I d.c.para abastecer de água a um importante enclave militar romano. Possui 15 km de extensão e embora apenas um destes não seja subterrâneo, cerca de 200 metros estão em pleno centro da cidade e se erguem por até 28 metros de altura que me deixaram de boca aberta.

Por mais que se leia e se ouça sobre a "Corrida de Touros", a tourada, só assistindo uma para se sentir o que realmente representa. Cruel, bárbara, triste, alguns diriam. Mas também bela. Especialmente quando se inicia o duelo-baile final entre homem e animal. Vi seis touros sendo mortos e um homem sendo corneado (chifrado segundo os espanhóis... daí corno...). O momento mais dramático para mim era quando a bandinha começava a tocar e dois cavaleiros entravam em cena para arrastar o pesado touro completamente morto para fora da arena. Se o matador tivesse sido convincente, os espanhóis se levantavam e saudavam-no com lenços brancos.

É isso. Estou verdadeiramente iniciando minha viagem agora. Mais que uma semana em uma cidade, talvez só no Brasil.

P.S.
Assunto não falta para escrever, mas, infelizmente, nem sempre é fácil encontrar locais acessíveis (e com preços idem) para isso. Ainda assim, me esforçarei para escrever o máximo possível ao longo da viagem.

[2] Alegria e tristeza em Cádiz - Espanha

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos.
Fernando Pessoa


Agosto, verão europeu. Faz um calor tremendo na Espanha e, além disso, o ar é bastante seco. Quando deixei Madri e comecei a descer em direção à região da Andaluzia tinha a esperança que o clima fosse se tornar um pouco mais agradável, mas estava errado, na verdade era ainda pior. Foi aí que decidi então, definitivamente, ir a uma cidade na costa da Espanha: Cádiz.

Em meu livrinho com a relação de albergues não constava um nesta cidade e temia ter que me hospedar em um hotel, o que seria um desastre orçamentário, mas deixei para me preocupar com isso depois. Cheguei lá logo pela manhã e mesmo de dentro do ônibus já era afetado pelo bom astral praiano, vendo o mar mediterrâneo, com ares árabes, se encontrar com o continente.

Por uma questão de sorte, comprei uma grande mochila, que além de todas as características que as mochilas para esse tipo de viagem possuem, continha rodinhas. Abençoadas rodinhas que me poupariam de muito esforço ao longo de toda minha viagem. Ali mesmo em Cádiz já ia arrastandoa mala da rodoviária ao centro, em busca de alguma pensão. Encontrei algumas bastante caras o que me fez adiar a continuação da procura para, finalmente, ver o mar de perto. Deslizei a mochila até a praia e fiquei um tempo contemplando o quebrar das ondas e sentindo a suave brisa. Por aqueles instantes tentava esquecer aquele enorme problema que seria encontrar um lugar barato para me hospedar. Àquela altura a cidade já tinha me conquistado e queria realmente passar uns dias ali.

Depois de algum tempo reiniciei a busca, mas decidi dessa vez perguntar. Me indicaram um albergue independente não muito longe dali e então lá fui eu, arrastando a bolsa novamente. O albergue não era dos melhores, e estava lotado. Tanto custo para encontrá-lo e estava lotado, o que faria? Percebendo minha preocupação, uma agradável senhora disse que havia uma saída, dormir no terraço. No terraço ? Terraço... Por que não ? Fechei o negócio, economizaria ainda mais. Subi então várias escadas até chegar à varanda descoberta e qual não foi minha surpresa quando descobri que a idéia não tinha sido nova. Quase uma quinzena de mochilas já estava ali! Mais uma agora. Ajeitei um dos colchonetes disponíveis e fui finalmente curtir a praia sem preocupações.

Tristeza.
Atravessei a cidade observando o estilo inconfundivelmente costeiro e fui caminhar pela areia. As praias não se comparam às brasileiras, mas só o fato de ter vindo de uma Sevilha ardente para sentir aquele vento frio, ouvir o som do mar, enfim, mergulhar naquele clima de descanso que todos à minha volta pareciam desfrutar, já era suficiente. Depois de curtir aquilo por algumas horas reparei numa movimentação estranha, não muito longe. Curioso, continuei caminhando naquela direção. A cara de todos já indicava que boa coisa não seria. Postei-me ao lado deles e depois de algum avanço pude ver, alguns metros abaixo, na areia, um corpo esticado. Era o de um mergulhador ainda parcialmente vestido. Seus pés-de-pato não foram retirados mas a roupa térmica estava semi-aberta. Uma equipe médica estava ao seu redor. Aplicavam-lhe soro, faziam massagem cardíaca e respiração boca-a-boca. O esforço era enorme, enquanto todos especulavam o que teria ocorrido. A única coisa certa é que eram um grupo de três. Os outros dois, já pressentindo o pior, de costas para o homem estirado ao chão, pareciam olhar sobre o mar para o infinito. Talvez estivessem se culpando por terem-no arrastado para as margens tarde demaisou talvez tentando entender o misterioso critério usado para terem sido eles os escolhidos para continuarem vivendo). Passado um tempo, um dos membros da equipe de salvamento estendeu um pano branco sobre o cadáver e todos sentiram duramente aquela batalha perdida, o gesto foi como o de um golpe desferido em nossos corações, o último golpe da foice da morte. O clima ficou ainda mais pesado quando chegaram, em pranto, os pais da vítima, e ainda policiais, e um carro com um caixão. Não havia mais esperanças. Mesmo o sol já descia abaixo da linha do horizonte e deixava que a noite viesse virar aquela página da vida. A última para aquele homem.

Alegria.
Voltei ao albergue e no terraço pude conhecer algumas pessoas. Dentre eles um mineiro que tentava encontrar seu lugar no mundo. Já havia passado por alguns países sendo que o último tinha sido Portugal. A música era o que lhe dava prazer mas confessara já ter feito muitas outras coisas para sobreviver. A medida que conversávamos, mais pessoas iam surgindo no terraço e fiquei muito contente em perceber que o clima ali parecia ser até melhor que nos andares de baixo. Uma roda já se fizera e cervejas regavam as conversas. Uma lua completamente cheia estava bem acima de nossas cabeças o que eliminava a necessidade de lâmpadas. Mais tarde saíram para um bar, mas eu, ainda um pouco abalado com tudo que acontecera naquele dia e também cansado devido à viagem e às horas gastas tentando procurar um lugar para me hospedar, decidi ficar e dormir sob aquela luz lunar.
Acordei no dia seguinte mais animado. Tomei um café reforçado e fui para a praia. Durante aquele dia e o seguinte, um dos meus passatempos prediletos seria observar as chicas e chicos espanhóis se divertindo. A brincadeira deles era bastante simples mas ao mesmo tempo continha uma boa dose de risco. Uma pequena via de concreto, por onde não podiam circular carros, se estendia sobre o mar até uma construção antiga que parecia ser uma espécie de forte. De diferentes pontos dessa via, as crianças reunidas em grupos, se atiravam ao mar. A altura ao longo da passarela era variável, mas só se podia encontrá-las nos pontos mais altos. Pulavam das mais diferentes maneiras. Às vezes sozinhos, às vezes em conjunto e ás vezes uma era escolhida para ser jogada pelos demais. A algazarra era enorme. O curioso era que a profundidade do mar nesses pontos parecia não ser suficiente para amortecer a queda, mas como quem dominasse a técnica há anos, pulavam e imediatamente emergiam. Uma festa que só não podia ser realizada quando a caprichosa maré estivesse baixa, mostrando o chão sob a ponte. Ou quando as aulas começassem, o que não tardaria muito.

P.S.
Entre Madri e Cádiz também gastei uns dias em Córdoba, da maior mesquita da Europa Ocidental, legado dos árabes invasores; e em Sevilha, onde pude assistir a um belo e emocionante espetáculo de flamenco além de contemplar uma esplendorosa Catedral Gótica que ocupa quase um quarteirão.

[3] Minhas 4 horas no Marrocos - Marrocos

Não resta dúvida que viajar é mais que fazer turismo; é uma mudança contínua, profunda e permanente no conceito que temos da vida
Miriam Beard


Comecei a descer a Espanha no sentido sul (depois seguiria do sul para o norte por Portugal e então do oeste para o leste pelo norte da Espanha) e à medida que ia encontrando outras pessoas elas me alertavam sobre a beleza de Marrocos, a saborosa comida, o preço convidativo e ainda que estava tão próximo... Além de tudo isso andaria de navio pela primeira vez e afinal de contas conheceria um país da África !

Alguns também me alertavam que viajar sozinho para lá poderia não ser uma boa idéia, que talvez devesse ir através de uma agência (e abandonar minha filosofia de não pagar as tais taxas administrativas que tanto encarecem as viagens ?), que havia muitos hustlers - pessoas que lhe abordam tentando carregar-lhe para um hotel, lojas e restaurante - fazendo com que gaste o máximo de dinheiro possível – enfim, que a África não se parecia em nada com a Europa.

Mas, vocês imaginam, fui passsando por tantas situações que a segurança ia aumentando e ia se tornando difícil acreditar no que falavam sem comprovar: fui. Já no navio, passando pelo estreito de Gibraltar, ia desfrutando da viagem e pensando no que me aguardaria. Mal sabia eu...

Tanger, quinta-feira, 07/09 14:00 hs
Logo ao sair do navio já podia avistar os tão falados hustlers e não estranhei quando uma pessoa já veio me abordar com um inglês de tirar o chapéu para quem nunca havia saído do Marrocos. Já fui me desvencilhando, falando que já tinha lugar para ficar, etc. Mas muito gentilmente ele foi me enrolando e, de repente, já havia um táxi à nossa frente. Durante o trajeto até o táxi ele usou uma tática pela qual jamais poderia esperar. Disse que fazia parte do albergue e que eles tinham um trabalho de recepção aos jovens no porto. Disse que aqueles hustlers - apontando - contribuíam para passar uma imagem ruim do Marrocos e que eles tinham todo um trabalho para evitar aquilo. Antes de entrar no táxi ainda perguntei:
-Pera aí, qual é o endereço ?
Ele respondeu. E bateu, o endereço era mesmo aquele. De qualquer forma teria que recorrer àquele luxo, pegar um táxi, que até então não havia usufruído, porque ali seria complicado obter informações sobre ônibus, além de que esse transporte particular naquele local era barato. Fomos. No caminho fui percebendo a barra pesada que seria eu caminhar naquele meio com a indisfarçável cara de turista, e o medo foi aumentando, e as recomendações para que não fosse sozinho vinham à minha cabeça. O albergue estava fechado (é costume neste lugar fechar o albergue cerca de três vezes ao dia por algumas horas) mas meu "amigo" dobrou o cara e pude ao menos deixar a mochila. Depois de todo aquele cenário, somado ao fato de que não poderia ficar no albergue naquele momento, me vi quase na obrigação de aceitar o convite daquele marroquino para "dar uma volta". Queria a todo custo me arrastar para um café mas disse que estava com fome e que o que precisava era comer. Ele todo simpático ia fazendo minhas vontades com muita camaradagem. Perguntei antes quanto seria, pois era estudante, blá, blá, blá. E ele disse que lá teria um menu com vários preços. O caminho até o restaurante foi chocante, mesmo para um brasileiro. Todo aquele burburinho em árabe, aquelas figuras com turbantes, gente vendendo dos mais estranhos produtos nas calçadas, adolescentes e crianças sentados sem fazer nada, sujeira pela rua, becos indecifráveis, um cheiro indescritível e inesquecível. Chegamos ao restaurante, e lá comecei a perceber a fria que tinha me metido. O menu só indicava um preço, um preço exorbitante para Marrocos, quase $10 ! Falei que não queria comer ali, que o preço estava alto demais para mim, mas o cara começou a ficar visivelmente hostil e percebendo a cobra que surgia ao meu lado comecei a temer pelo restante do meu dinheiro, e portanto de minha viagem pela Europa, que ainda não estava nem pela metade. Resolvi adotar uma outra tática, talvez a única possível, fingir que ele era realmente meu amigo e que eu era realmente o turista otário que ele procurava. Além do mais estava com fome mesmo e aquela comida, pelo menos, era realmente típica. Aceitei comer lá. E a medida que aquela exótica comida descia por minha garganta ia pensando como fazer para sair daquela. Naquela cidade não poderia ficar sozinho. Isso seria continuar pondo em risco todos os meus planos. Estava ali naquele restaurante, naquela terra estranha, com um potencial ladrão ao meu lado, sem ter como comunicar com ninguém, em meio a um cenário de muita pobreza e totalmente sem referências de onde estava. Via crescer ali meus limites. Tentava colocar em prática todo uma experiência inconscientemente adquirida ao longo desses meses no exterior, tentar manter a calma, afastar o calor dos acontecimentos e tomar uma decisão sensata, mas tenho que dizer que não foi fácil. Estava diante de uma situação totalmente nova e inesperada e me questionava até onde teria que ir essa procura pela experimentação do desconhecido. Um misto de impotência, medo, insegurança tomava conta de mim, sem falar na raiva. Raiva, porque embora às vezes pensasse que tivesse que fingir ser um babaca, também vinha a minha cabeça que talvez isso não fosse necessário, pois já estava naturalmente o sendo. E a comida ia descendo, o tempo passando... Acabei e pedimos a conta. Paguei. Não posso descrever o que senti quando vi metade do dinheiro que paguei ser entregue àquele marroquino salafrário. Mas àquela altura já tinha mesmo decidido que o menos arriscado seria realmente me "comportar" como uma vítima. A próxima parada seria uma loja de tapetes e souvenirs marroquinos. Chegando lá ele foi logo me dizendo que havia uma vista belíssima no topo e após pedir permissão ao dono da loja falou que eu poderia subir e tirar algumas fotos. Não tinha muitas alternativas e pensava que mesmo sentindo tanta coisa ao mesmo tempo teria que tentar tirar algum proveito da situação. Subia, e a cada degrau imaginava que a qualquer momento alguém surgiria daqueles cantos escuros, me ameaçaria e me roubaria todo o dinheiro, e na melhor das hipóteses ficaria por aí. Cada degrau subido era como uma batalha vencida contra o medo. Luz, alívio, surpresa. Realmente a vista era fantástica. Mar, casas humildes nos morros, o porto, parecia que avistava a toda Tanger em conjunto. Ainda desconfiado tirei a câmera da mochila e sem muita demora, tirei as três fotos mais caras de toda minha viagem. Em seguida aproveitei o momento sozinho para separar três notas em dólares das demais. Uma de $5, uma de $10 e uma de $20 e desci. O dono da loja começou a desenrolar em minha frente todos os tipos - muito belos por sinal - de tapetes. Eu, constrangido e sem muita tranqüilidade, tentava de todas as maneiras dizer que não os poderia comprar e que parasse com tanto trabalho em vão. Finalmente consegui me liberar, enfrentando hostilidade de novo. Saímos. Pedi educadamente ao marroquino que me levasse até ao albergue. E então veio o esperado.
-Agora você tem que me pagar.
Já estava preparado (separação das notas) e fui logo dizendo que como era estudante... poderia dar-lhe $5.
-Só isso, não !
-Cara, tome $10, vamos pro albergue - eu repliquei.
-Não, essa nota está manchada, me dá aquela de $20, que te dou o troco.
Nessa hora só pensava no restante do meu dinheiro e já não me importava com mais nada, além de sumir do lado daquele cara. Saiu por $15. Durante o caminho já pouco conversávamos. E depois de passar por parte daquele cenário exótico de novo ele disse:
-Você tem que me dar mais $5.

Permaneci calado fazendo uma expressão de desapontamento e evitando olhar para ele. Ele entendeu. Caminhamos mais um pouco e ele disse que não me acompanharia mais e que deveria seguir em frente para chegar ao albergue. Virei-me e parti sem lhe dar mais nada. Para onde ? Não sei. Imaginei que ele poderia ter acertado com alguém para me assaltar naquela região, todo cuidado era pouco. Entrei em outra rua andando muito apressadamente, e as coisas só pioravam. Era uma rua mais movimentada. Muitos vendedores espalhados, desocupados pelos passeios, vestimentas exóticas, murmúrio em árabe, pessoas falando em minha direção. Crianças querendo me tocar. Estava completamente perdido, vivendo meu próprio filme de horror, que naquele ponto, parecia alcançar seu clímax. Entrei em uma loja. Não encontrava de maneira alguma o endereço do albergue e começava a me desesperar. Tudo o que queria era sair daquela cidade. Finalmente encontrei o endereço, apontei-o para o dono da loja mas ele não sabia onde ficava. Saí, mais uns metros de tensão e entrei em outra loja. O dono desta sabia onde ficava, mas a explicação foi incompreensível. Saí de novo e vi uma luz no fim do túnel, um táxi. Fui em sua direção, mas naturalmente, em um dia que tudo dava errado, não cheguei a tempo. Vi outro, este sim. Depois de alguns minutos conseguimos nos entender. Negociamos o preço e acertamos de passar no albergue e depois ir para porto. O encarregado do albergue me xingou por 10 minutos por eu tê-lo acordado, era uma hora que o albergue estaria fechado novamente e me fez pagar a diária. Depois de mais um momento desagradável, peguei minha mochila e fui para o táxi que me deixou no porto. Felizmente a passagem que comprei na Espanha era ida-e-volta e não precisei me preocupar com isso. Vocês podem imaginar que sair da África para a Europa não é o mesmo que o contrário. Muita burocracia. E em uma das três filas que se convertiam em uma, o empurra-empurra era normal. Com meu estado alterado, imaginava que o pior aconteceria e que minha saída seria barrada. Mas finalmente meu pesadelo acabou.

Tanger, quinta-feira, 07/09 18:00 hs
Eu, no navio rumo a Espanha, quatro horas depois de ter chegado ao Marrocos, sentado no navio ao lado de uma loira criteriosamente escolhida (queria ter certeza que não era marroquina) pensando sobre tudo aquilo.

Até hoje ainda penso se aquela teria sido a melhor estratégia e se não teria agido no calor da emoção dos acontecimentos. Se talvez não teria sido melhor resistir e permanecer. Mas, bem, estou aqui seguindo viagem...Conhecer o Marrocos não é algo que está fora dos meus planos, não foi esse azar, causado um pouco pela imprudência, que me fará ignorar tudo de bom que falam daquele país. Mas, sozinho, não !

[4] Nossos ancestrais os portugueses - Portugal


O viajante sábio nunca despreza seu próprio país
Carlo Goldoni


Tenho que confessar que quando saí do Brasil, apesar dos inúmeros estímulos históricos, não estava nos meus planos conhecer Portugal. A primeira razão para isso era que lá não poderia colocar em prática um dos principais objetivos dessa viagem, ou seja, exercitar o inglês e o espanhol, por motivos óbvios. A segunda era que Portugal não reuniria, pensava eu, atrativos suficientes para uma visita, como os demais países europeus, o que vinha confirmando com outros viajantes. No entanto, a medida que gastava tempo na Espanha, fui mudando de idéia. Estava tão perto e já que viajaria tanto pela Espanha, por que não, estando no sudoeste deste país, diminuir um pouco o tempo gasto nele, subindo para o norte por Portugal e então voltar a Espanha por Santiago de Compostela para finalmente ir em sentido leste passando por Bilbao, San Sebastian e, finalmente, Barcelona ? Conheceria assim não só Portugal como também interessantíssimas regiões da Espanha como a Galícia (Santiago) o País Basco (Bilbao) uma bela cidade praieira (San Sebastian) e, a imperdível Catalunha com uma das principais cidades da Espanha (Barcelona).

Com a frustrada passagem por Marrocos, esse roteiro ganhou força. Tive que ir até Sevilha novamente, onde tomei o ônibus para Lisboa. Pela janelinha ia observando aquela paisagem amarela, agora muito ansioso para conhecer a nação que povoou nosso imenso país. Depois de passar por inúmeras pequenas cidades, algo mudava no cenário. Português ! Na Europa ! Depois de mais de um mês longe do Brasil ! Nas pequenas lojas, nos postos de gasolina, na lanchonete em cujas proximidades o ônibus parou para que lanchássemos! Que sensação boa poder usar nossa língua novamente para pedir um simples café, ainda que a resposta viesse com o, agora ao vivo, sotaque lusitano.

Cheguei em Lisboa no entardecer de um domingo e logo tratei de localizar o albergue. Decidi tomar o metrô e lá dentro tive que abordar um casal para certificar-me de que estava na direção certa. Eram brasileiros. Após sair da estação tive que perguntar novamente para localizar a rua. Perguntei para um senhor que estava na porta de um bar. Era brasileiro. Cheguei ao albergue e registrava-me na recepção quando um homem se postou ao meu lado para perguntar algo ao recepcionista. Era brasileiro. Subi e coloquei minha mochila no quarto. Tomei um banho e desci para ver como era a televisão portuguesa. Todos assistindo televisão eram brasileiros. O programa era o Fantástico.
Estava mesmo em Portugal ou o ônibus teria entrado por um portal sem eu perceber e ido parar em alguma cidade brasileira ? E aquilo era só o começo, vim a perceber que os portugueses assistiam nossas novelas, escutavam nossas músicas, comiam algumas de nossas comidas ! Uma colonização às avessas ? Somos agora a metrópole cultural ?

Lisboa tem o seu charme. Capital de um dos países mais pobres da Europa, um dos últimos a ser anexado à Comunidade Econômica Européia, possui uma parte moderna sim, onde se realizou a Expo 98, mas todas as demais regiões parecem se conservar como centenas de anos atrás. Em muitos bairros, como o Alfama, permanecem as extensas escadinhas estreitas entre as casas em cujas janelas invariavelmente se encontram as donas-de-casa portuguesas conversando com suas vizinhas. Roupas penduradas nos varais também ajudam a complementar a paisagem nostálgica. Nestes bairros ainda é muito comum se ouvir o fado, música com poesia bastante melancólica. No bairro de Belém, além do Mosteiro dos Jerônimos onde se encontram restos de Camões, Fernando Pessoa e Vasco da Gama também está o monumento das descobertas, celebrando o desbravamento dos portugueses pelo mundo. Foi neste bairro também que provei os tradicionalíssimos pasteizinhos de Belém, que são feitos com nata, deliciosos.
É importante ressaltar que o centro de Lisboa foi totalmente desfigurado em 1755 por um terremoto. Toda a reconstrução foi financiada pela colônia Brasil através do ouro e diamante extraído de Minas Gerais. Estima-se que foram extraídos, em valores monetários, pasmem, mais de um trilhão de reais!

Fui também até Sintra, que está a uma hora de Lisboa. Patrimônio mundial da Unesco, possui um clima bastante agradável por se localizar em enormes serras. Costumava abrigar o palácio de verão dos reis portugueses. O albergue em que me hospedei era uma antiga fazenda no topo de uma serrra. O acesso não era fácil, mas compensava.

A terceira e última cidade portuguesa em que estive foi a imperdível Porto. A cidade em si já é um belo cartão-postal com o rio Douro cortando-a. Algumas pontes, e ruas tão características como as de Lisboa, tornam uma caminhada pela cidade bastante agradável. Não se pode deixar de citar também o vinho, cujo processo de produção foi aperfeiçoado pelos ingleses. Desde então milhares de garrafas são exportadas para todo o mundo. Tive a felicidade de experimentar e constatar que a fama tem fundamento.

Deu para ter uma boa idéia de Portugal, apesar de ter descoberto que há várias outras cidades que merecem ser visitadas. Fiquei feliz de ter tomado a decisão de ir até lá, não me arrependi nem um pouco. Parece que ainda enxergam o Brasil como o paraíso, e nutrem uma simpatia bastante especial pelos brasileiros, têm orgulho de terem descoberto nossa terra.


P.S.
Estava com minhas malas na Praça da República em Lisboa esperando dar a hora de ir para a rodoviária e tomar o ônibus para Porto, quando vi uma aglomeração em frente à uma televisão. Me aproximei e vi as cenas das torres gêmeas de Nova York desabando. Seria aquilo um alerta aos capitalistas de plantão ?

[5] Da religião na Galícia ao terrorismo no País Basco - Espanha


Aquele que quer viajar rápido deve viajar desprovido de bagagens.
Antoine de Saint-Exupéry

A cultura espanhola é das mais ricas da Europa. A mescla originada pelo longo domínio romano e pelos séculos de possessão árabe-mulçumano deixou um legado incrivelmente rico, especialmente no sul do país, na região da Andaluzia. Mas o norte do país, constituído pela Galícia e país Basco mais a oeste e pela Catalunha mais a leste, também não pode ser desprezado.

A Galícia é uma região muito curiosa da Espanha, possui um dialeto, o galego, que está mais próximo do português do que do espanhol. E as semelhanças não param na língua, uma vez que faz fronteira com Portugal e sofre forte influência dos nossos colonizadores. A capital Santiago de Compostela é internacionalmente conhecida pelo caminho feito pelo apóstolo Santiago há centenas de anos atrás que culminava na cidade. Hoje o caminho continua sendo repetido por milhares de peregrinos ao longo de todo o ano. Saem em geral de cidades no norte da Espanha ou sul da França e caminham por cerca de 35 dias por uma região muito bonita. Durante os dias que estive em Santiago pude ver muitos peregrinos chegando. Alguns pareciam estar com muitas bolhas nos pés, observando-se a lentidão e dificuldade com que andavam. Vários deles trajavam roupas típicas da época, não dispensando o cajado. Cheguei a ver até casais numa provável lua-de-mel alternativa, já que possuíam em suas bicicletas a inscrição just marrie (recém-casados). A cidade é bastante religiosa e possui uma bela igreja no centro. Quando estava indo visitar um antigo mosteiro, um chileno me abordou. Disse que era ateu e que gostava de lanchar naquela região. Disse também que o diabo estava presente ali, visto que alguns anos atrás um avião havia caído bem em cima do mosteiro. Não constatei a veracidade daquilo, mas se alguém dissesse que na verdade o diabo estava logo ali na minha frente, não duvidaria, dada a raiva expelida pelo olhar de meu interlocutor, mesmo sabendo que estava em uma das cidades mais religiosas da Espanha - área inóspita para o exercício da tentação. Este acontecimento só vinha me confirmar o misticismo em que está envolta a cidade.

Deixei a a Galícia e segui para Bilbao, capital do País Basco. Essa outra região da Espanha é ainda mais intrigante. O dialeto falado ali não tem sua origem no latim, é totalmente diferente do espanhol. Parece mais russo. Dizem que é uma das línguas mais antigas do mundo. O número enorme de consoantes em seqüência nas palavras espalhadas pelas placas, cardápios, anúncios, tornava a leitura quase impossível. O país Basco é a sede oficial do ETA, grupo terrorista que “quer” que a região adquira autonomia de país. “Quer” está entre aspas porque, na verdade, se isso chegasse a acontecer, o grupo acabaria e, muitos dizem, essa não é a intenção, já que muitas pessoas vivem disso e ficariam desempregadas. Um outro fato curioso é que a maioria da população já não quer mais a independência, o que torna ainda mais incoerentes as ideologias do grupo. Em Bilbao visitei o nada convencional museu Gugenheim que me despertou sensações que outros museus não despertaram, talvez por ser mais contemporâneo e ter uma proposta diferente. A cidade me pareceu bastante moderna, mas as inumeráveis estátuas de touro, pintadas das mais diferentes formas, espalhadas pela cidade, propiciam um ar bastante pitoresco.

P.S. 1
Vejam como é nossa cabeça. Logo que vi meus dois companheiros de quarto no albergue de Bilbao já achei-os parecidos com árabes. Tanto se falam dessas conexões entre terroristas...

P.S. 2
Guerras Paralelas
No mesmo dia que acontecia o atentado em Nova York lia-se em um site na Internet que 35.000 crianças morriam desnutridas. E ainda acham que combatendo os sintomas resolverão o problema...

P.S. 3
Fala-se aqui que seja quem for o autor do atentado, teria lucrado com especulações na bolsa, vendendo ações antes da queda das torres e comprando-as depois a um preço muito mais barato...

[6] San Sebastian de ponta a ponta - Espanha


Ainda que demos a volta ao mundo procurando a beleza, temos que também carregá-la dentro de nós mesmos ou não a encontraremos
Ralph Waldo Emerson


De Bilbao segui para San Sebastian, também na região do País Basco. Essa cidade na costa norte da Espanha foi uma das mais belas que visitei até agora. Com águas limpíssimas e com montanhas que proporcionam belas vistas, pequena e com construções históricas marcantes, é refúgio de verão dos reis espanhóis. Possui também um largo calçadão e belas praias, atraindo muita gente no verão, especialmente as francesas que, aproveitando a proximidade da região com a França elegeram o local para livremente praticar o topless.

O albergue se localizava em uma das extremidades de San Sebastian, assim, pela manhã, aproveitando a pequena dimensão da cidade, caminhava em direção à outra ponta e retornava ao anoitecer.

No início do trajeto ia percebendo o começo da movimentação. Os donos de alguns quiosques já estendiam seus guarda-sóis na esperança de atrair clientes, algumas pessoas iniciavam sua corrida matinal, crianças já brincavam na areia. Depois de caminhar um pouco, involuntariamente me vi diante de uma bifurcação Escolhi um caminho que me afastou da praia mas que me levou ao Palácio Miramar. O rei espanhol que mandou construir aquele Palácio na junção das praias da Concha e Ondareta não devia ser nada bobo. A vista era deslumbrante, assim como os jardins que cercam o Palácio. Prossegui e passei pela outra praia até atingir o porto e o centro antigo, chamado Parte Vieja. Casas típicas recheavam a porção continental ,e barcos dos mais diferentes tipos ocupavam o mar. Um pouco mais adiante encontrava-se a base do Monte Urgull com um imenso aquário e um museu naval. Ali do lado era onde os golfinhos davam o ar de sua graça. Às vezes, caprichosamente, exigiam minutos de observação atenta ao mar para serem localizados, mas em outras ocasiões pulavam sucessivamente (como se quisessem armazenar uma reserva de ar), embelezando ainda mais aquela paisagem de férias. Prossegui. Agora, o bater das ondas no paredão recém-construído produzia um som interessante e se não ficasse atento podia tomar um banho a contra-gosto. O mar parecia protestar contra aquela obstrução não natural e atingia com tal força o concreto que a água jorrava metros acima, vindo a cair onde pessoas andavam. Não muito longe, uma ilha já podia ser melhor observada. Finalizado o paredão uma nova praia surgia. Esta mais agitada, a preferida dos adoradores de surfe e bodyboard, dezenas deles podiam ser vistos espalhados dentro ou fora do mar. Fim do trajeto, a única opção agora era voltar. E voltei. Passei pelos mesmos cenários novamente sem me cansar de tanta beleza tão concentrada. Mas não tinha compromisso com o relógio, vez ou outra parava, contemplava, fotografava, assistia, ria, ou comia ( pois saco vazio não para em pé). O sol já estava bem baixo no horizonte. De volta ao ponto inicial, percebia algo diferente, não menos surpreendente que tudo que àquela altura o dia já tinha me oferecido. Ali também havia um paredão; um paredão que acompanhava a acentuada curvatura do local. Com a maré atingindo seu máximo, os praticantes de bodyboarding e as crianças que haviam acabado de deixar a escola aproveitavam aquela conjunção para se divertirem, cada um a seu modo. Os primeiros deitavam nas suas pranchas e aguardavam as ondas semiconduzidas, paralelas ao paredão. Quando as pegavam no tempo certo a impressão que se tinha era a de que se esborrachariam nas pedras justapostas com cimento que formavam a grande parede. Chegavam realmente muito perto, mas as ondas acompanhavam perfeitamente a curvatura, virando quase 180 graus e os atirando de volta ao mar. Mas o perigo maior ainda não era esse. Como as ondas só tinham esse comportamento próximo ao paredão, todos se concentravam numa estreita faixa de 5 metros de largura por uns 50 metros de comprimento congestionando totalmente o local. Não era incomum que gritassem para que os da frente tomassem cuidado quando obtinham sucesso na escalada da onda. Eu, em cima do paredão, ao lado de inúmeros outros curiosos, apenas observava com inveja a divertida brincadeira. Também do meu lado, mas um pouco mais abaixo, estavam as outras crianças que citei. Todas se posicionavam bem próximas ao paredão em um ponto onde o choque da onda invariavelmente provocava uma pequena chuva artificial. Quando percebiam a onda se aproximar tentavam avaliar a quantidade de água que seria jogada para fora. Assim, se a água fosse pouca, permaneciam ali; mas se achassem que seria muita, aprontavam uma gritaria e corriam no último milésimo de segundo. Não é preciso dizer que, por várias vezes, ou não corriam rápido o suficiente, ou avaliavam mal a quantidade de água espirrada. No final não havia uma sequer com os uniformes de escola secos e todos já brincavam descalços, tendo deixado seus tênis molhados ao lado das mochilas que estavam em local protegido. Alguns dos pirralhos até exibiam pequenos cortes decorrentes dos constantes tombos, mas anestesiados pela adrenalina não davam indicação de dor. Somente a definitiva retirada do sol pôs fim à algazarra dentro e fora do mar, era hora de ir embora.. Eles e eu deveríamos repor energias para o dia seguinte.


P.S.
Afinal quais são os limites entre o 1o mundo e o 3o mundo ? Vejam a carta enviada por um leitor para o El Pais, maior diário espanhol:

Spain is different

Como se reconoce a un español en el extranjero ? Fácil, es el unico que fuma en um recinto donde esta prohibido fumar e quando se lo recuerdas te insulta alegando sus derechos y liberdades. Mientras el resto de los viajeros del aeropuerto internacional de ** contemplan desolados la escena, algunos extranjeros acuden en mi consuelo. Como les explico que en Espana se fuma en el metro y hasta en los ascensores ? Y esto es norma, o no ? Hasta cuando ? Vendra el cambio con el euro ?
Ernesto Palacios, Madri
** = Sao Paulo !!

[7] Barcelona é um festival - Espanha

Viaje com seus iguais ou com seus superiores;
se não encontrar nenhum, viaje sozinho
The Dhammapada


Era hora de conhecer a minha última cidade da Espanha, a não pouco badalada, cosmopolita, Barcelona. Em alguns aspectos chegaria a dizer que esta cidade com dialeto próprio, localizada na região da Catalunha, é a Las Vegas espanhola ou mesmo a Las Vegas européia. Um lugar onde as pessoas vão para passar a noite em claro se divertindo.

Quis o destino que eu chegasse lá exatamente na semana que era comemorada uma das festas mais tradicionais da região, a Festa de La Mercê. Desse modo, se já não chegasse todos os atrativos que a cidade oferece, ainda pude desfrutar de uma agitação diurna e noturna ainda mais acentuada. Conheci até o famoso grupo Mano Chao em um show aberto com mais de 60.000 pessoas.

Barcelona com seu bairro gótico e igreja no mesmo estilo, com as obras de Gaudí, com seu famoso time de futebol, cujo estádio conheci (e no qual tive a felicidade de assistir a uma partida), com a praia, o parque olímpico construído para as olimpíadas de 92, com a famosa rua La Rambla e as inúmeras praças, não pode ser conhecida em poucos dias. No entanto bastam poucas horas imerso no clima da cidade para se perceber porque todo viajante cita Barcelona como parada obrigatória.

Gaudí tem considerável mérito pelo fato de a cidade ser considerada tão especial. Suas obras estão espalhadas por todos os lados como num museu a céu aberto, um museu de obras arquitetônicas. A Casa Batlló é um prédio com fachada de mosaicos coloridos projetado por Gaudí. A Casa Millá, não muito longe dali, também bolada por ele, funciona como espaço para exibições. Mais a leste se encontra o muito visitado Templo da Sagrada Família, ainda que inacabado. O início da construção se deu em 1882 e a previsão de término é o surpreendentemente longínquo 2082. Estão prontas 8 torres de um total de 18 que representarão os 12 apóstolos, os 4 evangelhos, a mãe de Cristo e, a mais imponente, o próprio Jesus. Depois de pronta será a maior Catedral da Europa. Finalmente, um pouco mais longe, se encontra o Parque Guell. Este parque é originalíssimo. Dentro de uma grande área verde se encontra a casa onde Gaudí viveu seus últimos 20 anos, com várias esculturas, colunas e bancos curvos feitos de mosaicos coloridos em um local que instiga até a mais insensível pessoa para um descanso contemplativo.

Mas se comparei Barcelona com Las Vegas, agora me retrato. Enquanto a primeira apresenta dinheiro fluindo dentro dos cassinos, Barcelona possui cultura jorrando pelas ruas, e expoente disso é a La Rambla. Situada entre o porto e a Praça da Catalunha, praça que é palco de festas (como a que estava acontecendo) e de manifestações políticas, a rua La Rambla é o local onde os artistas da calle esbanjam criatividade a fim de garantir seu ganha-pão. Estátuas humanas que só se movem depois de receberem uma moeda, arte interativa, apresentações de shows com marionetes, concertos musicais com instrumentos improvisados, sósias de personalidades apresentando as habilidades dos imitados, enfim, uma profusão de atividades que nunca deixam os cerca de 500 metros da rua sem movimento, ainda mais com o apoio do ritual dos blocos de massa humana que se move, pára, assiste e se move novamente.

Além de tudo isso Barcelona tem praia, o que fez um carioca saudosista dizer que havia encontrado a cidade pela qual trocaria o Rio de Janeiro...
Hemingway escreveu que Paris é uma festa. Barcelona é um festival.

P.S.
É prazeroso constantemente ouvir que uma Copa do Mundo sem o Brasil não teria graça. Sustentam que uma copa sem um Brasil x Itália, Brasil x Alemanha, Brasil x Inglaterra... não seria copa. E olha que isso é a opinião também dos argentinos que encontrei por aqui, aliás, está chovendo argentinos na Europa em conseqüência da crise naquele país.

[8] Nós que aqui estamos por vós esperamos - França

O turista que se move para ver, ouvir e abrir-se para todas as influências dos lugares em que se condensam séculos de grandeza humana é simplesmente um homem em busca de excelência
Max Lerner


É muito difícil definir qualquer cidade estando há poucos dias nela, ás vezes menos. Nesses dias podem haver tantas variáveis: período de férias ou não, final de semana ou não, uma festa, uma turma, o local de hospedagem, o humor, o tempo. Então pode-se falar de impressões, que podem ser realmente o que a cidade representa, parte disso, ou, até, uma impressão totalmente fora da realidade. Mas, se a escola de pintura impressionista foi fundada na própria França e tinha como tendência geral a transmissão das impressões fugazes e a mobilidade dos fenômenos, mais do que o aspecto estável e conceitual das coisas, nenhum lugar melhor para se ter esse tema levantado. Que de agora em diante, então, vocês possam ter em mente que sempre falo de impressões; impressões minhas.

Talvez nenhuma outra cidade aguce tanto os sentidos como Paris.
Olfato. Independentemente por onde se caminha, a atmosfera é sempre perfumada. O cheiro exala dos famosos perfumes franceses ou das comidas cuidadosamente preparadas.
Paladar. Comidas estas que não podem ser ignoradas. Apesar dos altos preços, o prazer de se degustar um bom vinho da região de Bordeaux, acompanhado de uma refeição autenticamente francesa, só mesmo esse pobre e demasiadamente sensato mochileiro que vos escreve poderia resistir. Que tentação !
Audição e visão. Tentação ainda maior se próximo a mesa, como é comum, houver uma boa música ao vivo e se a própria mesa estiver em um local com vista para fora, de modo que se possa assistir ao desfile das pessoas comuns que não deixam absolutamente transparecer pela roupa a classe social a que pertencem, um show de elegância, especialmente visto na avenida Champs-Elysées.

Desde há muito que sonhava em vir para a Europa, e sempre vinha a minha cabeça França, Paris, Torre Eifel. Não sei explicar o motivo, mas creio que todos devem ter em mente algo parecido. Tracei um roteiro bem ambicioso para 3 dias em uma cidade tão repleta e no primeiro já incluía a subida àquele monumento construído em 1889 pela ocasião dos 100 anos de Revolução Francesa e que deveria ser desmontado em seguida, o que causou muita polêmica na época. O que me reservaria a torre depois de ter passado pela Catedral de Notre Dame, Museu do Louvre, Avenida Des Champs Elysées, Rio Sena e Arco do Triunfo ? Pois bem, bonita ? Não se pode dizer que é a mais linda torre do mundo. Uma perfeição em engenharia ? Também não creio. Então, o quê ? Glamourosa. É a torre Eifel que escuto desde criança, a que vem à cabeça quando se fala de França, a que aparece nos filmes, a que se pode ver uma pontinha de diferentes partes da cidade; a que de dia, ou de noite com suas luzes, se impõe. A que te diz: você está na França. E o melhor foi subir no alto de seus poucos mais de 300 metros e ver o anoitecer da Cidade Luz.

Ao mesmo tempo em que preservam a memória e valorizam o patrimônio histórico, penso que os franceses também não se descuidam do turismo. Próximo à praça de La Concorde, onde um dia havia a guilhotina que decapitou mais de 1300 pessoas, como Danton e Robespierre, há um obelisco funcionando como marco histórico. O Arco do Triunfo, simbolizando as vitórias de Napoleão, foi construído, em 1830, exatamente alinhado com o o obelisco, na outra extremidade da Avenida Champs Elysées. Agora, numa área com prédios moderníssimos na cidade, (que certamente não o serão mais em algumas centenas de anos), abrigando o maior conjunto de escritórios da Europa, foi construída uma versão contemporânea do Arco do Triunfo, o Arco de La Defense, comemorando os 200 anos da Revolução Francesa. Detalhe: este também é perfeitamente alinhado ao velho Arco do Triunfo e ao Obelisco, constituindo assim um roteiro perfeito para os ávidos turistas, de hoje ou de amanhã...

Vocês podem estranhar, mas no último dia fiz um passeio nada convencional, fui ao Cemitério Du Pere Lachaise. Acho que é sempre bom lembrar que assim como Balzac, Chopin, Prost, Delacroix, Oscar Wilde e Jim Morrinson, entre outros famosos que estão enterrados neste cemitério, teremos o mesmo fim. A propósito, o título deste texto é homônimo de um excelente filme brasileiro filmado inteiramente em preto-e-branco mas que termina com uma cena colorida no cemitério. A câmera vai se afastando e então se pode ler na entrada do cemitério:
"Nós que aqui estamos por vós esperamos".

P.S.
Há vários imigrantes brasileiros na Europa. Aparentemente a maior concentração está em Portugal, onde conversei com muitos, e na Inglaterra. Não estive no país da Rainha Elisabeth mas encontrei vários brasileiros que estavam viajando, depois de trabalhar naquele país por um período; a maioria voltaria para lá, outros para o Brasil.

[9] Tráfego intenso em Amsterdã - Holanda


Todas as viagens são lindas, mesmo as que fizeres nas ruas do teu bairro. O encanto dependerá do teu estado de alma.
Rui Ribeiro Couto


Não me enganei, não. Embora também exista tráfico estou falando de tráfego mesmo. Nunca ninguém havia me alertado que havia esse tipo de coisa na Holanda. E não há rua que fique fora disso e, pior, há até dentro dos parques e paralelos aos canais. É incrível. Eu já escapei de ser atropelado várias vezes, e isso porque estava tomando muito cuidado. Cheguei até a ver o movimento de ambulâncias e o atendimento a uma senhora que havia acabado de ter sofrido um acidente. Lá estava ela deitada e, ao seu lado, o agente causador de tal confusão: sua bicicleta. Sim, falo do tráfego de bicicletas. Um caos total. Mas um caos muito saudável, muito bem-vindo. Em cada rua, lá estão elas, das mais variadas marcas, das mais variadas idades, dos mais variados estilos. Estão mais próximas daquelas velhas barras-fortes com pára-lamas, retrovisor, garupa e buzina do que as modernas mountain bikes. Entre o passeio e a rua, na maior parte da cidade, existem as ciclovias e existe também um semáforo específico para elas. E por falar em semáforos, pedestres e até ciclistas não costumam respeitar muito o sinal vermelho. E nas ruas estreitas forma-se a maior confusão: carros, motos, trams (espécie de bondinhos que possuem um trilho específico no meio da rua), bicicletas e pessoas ! Todos conseguem se relacionar harmoniosamente, mas um turista desavisado só consegue perceber isso depois de alguns dias…

Minha estadia em Amsterdã ficou valorizada pelo excelente albergue em que me hospedei que, além de tudo, estava de frente para uma das entradas do Vondelpark. Principal parque da cidade, com certeza, um dos mais bonitos da Europa. No mais é aquela Amsterdã tão divulgada, com o Red Ligth District, a zona vermelha onde as damas da noite se expõem (aqui é permitido por lei) através de vitrines nas sacadas da casas; com os Coffe Shops, que na sua maioria se recusam a vender bebidas alcoólicas e possuem menus a base de THC. Com muitos Sex Shops; com cartões postais dos mais bizarros (que não vi iguais em lugar algum); com inúmeros canais que unidos aos nomes de ruas complicadíssimos contribuem para deixar perdido qualquer novato na cidade. Com o excelente museu do intrigante Van Gogh, que viveu sustentado pelo irmão, em um ataque de loucura chegou a cortar sua própria orelha e um tempo depois se suicidou, com o museu de Anne Frank legado importantíssimo para que erros como o nazismo não voltem a ser repetidos. Enfim, Amsterdã é uma cidade realmente bastante curiosa, que muito além de sua política liberal em várias áreas, que a fez conhecida no mundo todo, possui inúmeros outros atrativos.

[10] Nem tudo é perfeito no Primeiro Mundo - Dinamarca

O verdadeiro viajante é aquele que viaja a pé, e ainda assim se
senta muitas vezes
Colette


Cheguei em Copenhague faminto e logo ao descer na estação de trem central fui procurar algo para comer. Mas como sempre fazia, primeiro estudava um pouco os preços, fazendo as devidas conversões. Os valores estavam um pouco mais inflacionados do que em Amsterdã, mas encontrei um sanduíche natural que parecia ser uma boa barganha. Troquei um pouco de dólar em coroas dinamarquesas numa loja de Câmbio dentro da própria estação e comprei o sanduíche. Enquanto comia localizei o balcão de informações e confirmei o local onde teria que pegar o ônibus para ir até o albergue.

Os ônibus eram moderníssimos e possuíam dois andares. Sentei lá em cima, bem na frente, e a medida que o ônibus andava eu fazia o primeiro reconhecimento da terra dos vinkings. Tudo era muito belo, mas subitamente meu humor foi mudando, parecia que estar num local onde poucos estrangeiros tinham acesso não mais me alegrava. Aquele ônibus diferente, as ruas bem sinalizadas, a arquitetura típica, as fachadas das lojas, o sotaque dinamarquês, as pessoas loiras, nada mais me chamava atenção e, muito diferente disso, me provocavam náuseas. Era algo forte, que vinha de dentro. Não havia mais dúvidas, eu estava passando mal, e as dobras de meu estômago se comportavam como uma sanfona desafinada.

Agora tudo o que queria era chegar até minha hospedagem. Mal chegara à cidade e já daria um vexame ? E em pleno transporte público ? Não. Tinha que agüentar. O final do trajeto pareceu ter durado uma eternidade e o bolo alimentar regurgitava clamando liberdade. Entrei rapidamente no albergue onde ainda teria que aguardar em uma fila, pois a recepção seria aberta em breve. Não titubeei, antes de qualquer coisa saí em disparada em busca de um banheiro, e quando encontrei um...

Era assim que eu agradecia a recepção da Dinamarca ? Bem, nada mais merecido, afinal, num local considerado primeiríssimo mundo, o mínimo que se poderia esperar era um melhor controle de qualidade dos alimentos, principalmente com essa clássica causadora de indigestões mundo afora, a famigerada maionese. Mas o incidente não atrapalhou meus planos seguintes e em breve já estava novamente preparado para conhecer a cidade.

Assim como em Amsterdã, o transporte através de bicicletas em Copenhague é encorajado. A cidade é bastante plana e sempre entre as largas ruas e os passeios existe uma pista exclusiva para bicicletas. Em vários locais espalhados pela cidade há “bicicletas públicas”, ou seja, basta depositar algumas moedas em um dispositivo-tranca que prende o pneu, que a bicicleta é liberada. Anda-se o quanto quiser e depois é confiado que a bicicleta seja deixada novamente em qualquer destes pontos. Fascinante, não?! Infelizmente não encontrei nenhuma disponível no horário que me interessava e então aluguei uma em uma loja mesmo, a um preço bem convidativo.

Pus-me a vaguear com minha nova companheira. Andei pelo centro e me enveredei pela parte periférica da cidade onde pude encontrar uns canais muito interessantes que, creio, renderão boas fotos. Mas, de repente… começou a chover. Imaginem, uma mochila nas costas, um guarda-chuva em uma mão e ia controlando a bicicleta com a outra... agora descobria a utilidade daqueles enormes pára-lamas. Pára-lamas. Felizmente a chuva parou e ainda pude conhecer as casas onde viveu o famoso escritor Hans Christian Andersen, criador de “O patinho feio” e “O soldadinho de chumbo”, entre outros. Posteriormente fui ao local onde se encontra uma escultura bastante visitada em Copenhague que representa toda sua obra, a estátua da Pequena Sereia, personagem de um de seus contos.

Copenhague apresenta uma qualidade de vida invejável, assim como a beleza de seu povo. O outono colorindo as folhas das árvores de amarelo e as transferindo para o chão também deu um toque bastante especial a essa parada, apesar da indisposição digestiva...

[11] Presente de aniversário escandinavo - Noruega


Mudam de clima, não de alma, aqueles que atravessam mares
Horace


Cachorro quente e coca-cola: R$13,00
Ônibus circular : R$ 6,00
Big Mac Menu : R$19,00
Latinha de coca-cola : R$ 5,00
Quilo de banana : R$ 8,00

Tá certo que as mais diversas fontes me alertaram sobre os altos preços nos países da Escandinávia (Dinamarca, Suécia, Noruega - não fui à Finlândia) mas ainda assim não pude deixar de ficar surpreso com esses valores da Noruega. De longe o país mais caro que já estive e onde é impossível economizar, sem passar fome, é claro. Mas ainda assim valeu muito a pena.

Oslo não se compara às demais capitais dos países escandinavos, mesmo sendo a mais antiga delas, mas possui um parque com cerca de três centenas de esculturas muito original, que por si só já faria merecer uma visita. A entrada é ladeada por esculturas com humanos de todas as idades, alguns sozinhos, outros com toda a família, fazendo alusão às várias fases da vida. Caminhando-se mais um pouco chega-se ao centro do Parque, onde há um obelisco feito de estátuas de pessoas justapostas umas sobre as outras, em diferentes posições. Impressionante. Nesta cidade também há uma galeria com quadros que provocaram em mim vontade em aprender a pintar, quadros com paisagens belíssimas de várias fases do dia, em diferentes partes da Noruega, presumo. Lá também pode ser vista a obra máxima do movimento expressionista, O Grito, de Edvard Munch.

Minha estadia na Noruega foi realmente um presente de aniversário. Me auto-convenci a cometer um excesso e comemorar o dia do meu nascimento adentrando nesse país nórdico. Após o show de arte em Oslo parti para um show da natureza, uma bela viagem de trem até Bergen, cidade no extremo oeste da Noruega (Oslo fica no extremo-leste). No começo, paisagens bucólicas, muitas fazendas com árvores amareladas, típicas do outono. Depois, numa altitude mais elevada, um cenário com árvores completamente sem folhas, secas, parecendo que ali o outono acabara mais cedo devido às baixas temperaturas e que a região esperava ansiosamente pelo inverno, pela neve. Mais adiante quase não havia vegetação, mas sim montanhas de rochas em uma cor muito peculiar, meio esverdeadas. Parecia que estava na superfície de algum outro planeta. E finalmente as árvores amareladas voltavam a aparecer, mas dessa vez também já se podia ver mostras de fiordes, montanhas que pareciam ter sido recortadas verticalmente ao acaso, irregularmente, sendo então algumas das partes retiradas e no lugar fosse colocado água pela metade, uma beleza muito particular. A partir da segunda metade era muito comum se ver lagos e, muito freqüentemente, o trem entrava em túneis através das montanhas e quando saía podia-se ver uma paisagem deslumbrante, mas por pouco tempo, só até o próximo túnel. Essa entrada e saída sucessiva em túneis e mesmo os buracos dentro destes fizeram com que eu visse uma boa parte das paisagens através de quadros, quadros de um filme visto em câmara lenta, ou de fotografias visto em velocidade avançada. Também era muito comum se ver rebanhos de ovelhas pastando em frente às casas das fazendas.

Em Bergen tomei um tour para os fiordes. As montanhas não eram tão chocantes quanto às que vi durante a viagem, mas paramos em um povoado, Lithus, cujo único acesso era de barco e que parecia ser um pedaço de paraíso. Mar, montanhas, neblina, casas típicas com fumaça saindo pela chaminé, plantações de maçãs e até a velha igrejinha com um cemitério ao lado me faziam refletir se realmente não estava sonhando, em meio à imaginação provocada pela leitura de um livro ou relembrando imagens de algum filme. Pedi para um alemão tirar uma foto minha e quando fui subir em uma pedra levei um tombo que me custou quatro noites mal dormidas, dores que confirmavam que aquilo era a mais pura realidade, para o meu deleite.

[12] Um albergue diferente - Suécia

Todas as partes é nenhuma parte. Quando uma pessoa dedica todo seu tempo viajando no exterior, acaba tendo muitos conhecidos, mas nenhum amigo.
Seneca


Visitei duas cidades na Suécia: Linkoping e Estocolmo. A primeira, uma cidadezinha no interior do país que ajudou a reforçar a idéia de que os países escandinavos são realmente a Europa da Europa, com uma qualidade de vida invejável, principalmente devido ao alto nível educacional e a ótima estrutura social, exemplo a ser seguido. Mas obviamente nem tudo são mil maravilhas, o clima frio na maior parte do ano parece também atingir as pessoas, mas, felizmente, sempre há exceções.

Conheci um casal de suecos nesta cidade através de um amigo que está residindo temporariamente aqui, e passamos uma noite agradável juntos. Ambos trabalhavam em uma universidade sendo que o senhor tem uma série de atividades relacionadas ao terceiro setor no currículo. Aprendeu o português em Portugal para trabalhar como voluntário nas outras colônias de nossa ex-metrópole na África e já esteve várias vezes no Brasil para ministrar palestras sobre o assunto. Através dele fiquei sabendo que a Suécia, apesar de pequena, é um dos países mais altruístas do mundo, com milhares de organizações-não-governamentais, as ONGs. Depois de um delicioso lanche típicamente sueco, à base de cogumelos, na casa deles, ainda fomos ao cinema (de bicicleta) e depois tomar um capucino em um Café, momentos muito prazerosos, de conversas muito ricas. Linkopink é pequena, entretanto possui uma área antiga preservada com casas de séculos atrás que unidos a esse casal simpático valorizaram muito a visita.

Estocolmo é com certeza uma das capitais mais bonitas do mundo. Formada por quatorze ilhas, tem uma que se destaca, a “Gambla Stan”, com ar medieval, ruas estreitas e casas típicas muito bem preservadas. As pontes ligando as ilhas também proporcionam cenários interessantes. A cidade poderia ser conhecida quase toda a pé, não fosse a irritante dor que me incomodava. Mas quando a beleza me fazia esquecer, caminhava obsessivamente. Mais longe da parte histórica está o centro comercial, com uma rua recheada de lojas, além de várias galerias.

O fato inusitado dessa parada ficou por conta do próprio albergue: um enorme barco ! Sim, atracado na ilha de Skeppsholmen. E pouca coisa foi adaptada. Os banheiros eram bem estranhos, com piso inclinado, e dormíamos em cabines. Quando o barco balançava tínhamos que nos equilibrar. Bem, a outra opção de albergue em Estocolmo era uma prisão onde se dorme em celas...

P.S. 1
Uma causa de morte freqüente na Suécia é a ingestão de cogumelos tóxicos. O cogumelo está muito presente na culinária deles, sendo que muitas vezes eles próprios os coletam nas florestas. Vez ou outra confundem as espécies e o erro resulta fatal.

P.S. 2
O trem que deveria me levar até Linkoping foi cancelado e tive que esperar e pegar um em outro horário. Devido a isso viajei pela primeira vez de primeira classe, uma recompensa dada pela companhia que foi à altura do inconveniente, principalmente pela boa comida que foi servida.

P.S. 3
E para completar, para sair de Linkoping, tive problemas devido a uma greve dos ferroviários ! Na Suécia ! Tive que pegar trens alternativos caros e gastei “desnecessariamente” $30 com reservas...

[13] Berlim: a reunificação não acabou - Alemanha


Guarde somente aquilo que possa levar consigo; conheça os idiomas, conheça os países, conheça as pessoas. Deixe que sua memória seja sua bolsa de viajem.
Alexander Solzhenitsyn


Falar de Alemanha é falar de história, afinal o país foi o pivô das duas guerras mundiais do século passado e as marcas e conseqüências disso não podem ser apagadas em pouco tempo, se é que um dia serão. Após a 2a guerra mundial, Berlim foi dividida em quatro. Três partes ficaram com os aliados, França, Inglaterra e EUA e a última com os soviéticos. Devido à fuga de pessoas para o ocidente, em 1961 o muro de Berlim foi construído pela Alemanha Oriental socialista, com o pretexto de que seria "uma barreira contra o imperialismo do ocidente". Kennedy, então presidente dos EUA, respondeu: "melhor um muro que uma guerra". O coração de Berlim foi então literalmente partido e dois novos centros naturalmente surgiram, um do lado capitalista, mais a oeste, onde hoje é o Europacenter, e um outro do lado socialista mais a leste, onde hoje é o Mitte. Com a queda do muro em 1989 seguida da reunificação em 1990 a zona morta próximo ao antigo muro voltou a ter relevância e hoje um novo centro está sendo criado com a construção de prédios com arquitetura bastante moderna como o do Parlamento Federal e o Sonny Shopping Center e com a remodelação-criação de praças. Ou seja, Berlim em um futuro próximo terá um terceiro centro.

Meu plano inicial era dedicar o primeiro dia em Berlim para obter os vistos para Polônia e República Tcheca (quero ir a Cracóvia e Praga) mas meus planos foram frustrados por informações erradas sobre as embaixadas que obtive no centro de informações berlinense. Decidi então mudar tudo novamente: vou para a Áustria (Viena) e lá tentarei os vistos. Acabou sendo uma solução excelente já que acabei percebendo que estarei ainda mais próximo de Cracóvia a partir de Viena. Como ganhei o dia livre subitamente, tratei de começar meu sigthseeing (passeios turísticos). Felizmente as supostas embaixadas eram no antigo coração de Berlim o que tornou bastante fácil o início da exploração da cidade. Como estava sem guia comecei a andar ao acaso. Antes pensava que em questão de minutos teria uma transformação completa do oeste para o leste, mas isso não é bem verdade. A diferença é sim gritante, mas não acontece em minutos. Isso porque do lado ocidental há um enorme parque, que não é o mais bonito da Europa, mas é o maior, que impedia a sensação instantânea que esperava. Mas ao passar pelo último portão que restou do muro que dividia a cidade, o portão de Brandemburgo, que está em reformas, a atmosfera começou a mudar. A arquitetura dos prédios é de tirar o fôlego e é uma atração atrás da outra. A Ópera, a Universidade onde estudou Einstein e Marx, catedrais, museus cujos prédios deveriam ser eles próprios objetos de museus, praças, a prefeitura... E naquele momento não sabia o que era o quê, só ia tirando fotos. Evidentemente teria que voltar àquele lugar, o que fiz logo no dia seguinte. E então subi numa torre de 365 metros de onde era possível ver todos aqueles prédios e onde se encontravam também fotos numeradas, seguidas da lista do nome de cada lugar. Como minha dor havia finalmente desaparecido andei pela cidade toda. Também conheci bairros não tão turísticos. Uma rua com uma sinagoga dos judeus, reformada devido aos bombardeios que sofreu; um centro comercial também judeu em ruínas que virou um espaço cult para artistas e....o muro ! Me surpreendi com a extensão que ainda está de pé, cerca de 500 metros, todo grafitado. Pelos desenhos dá para se ter uma idéia da comoção que ele causou, principalmente porque a "galeria a céu aberto" está do lado leste, do lado oeste só há mato. Tudo que citei até agora está na parte oriental de Berlim que vim a constatar que é a parte realmente interessante da cidade. No lado oeste, além de centros comerciais, zoológico, lojas de grife, digno de visita mesmo só uma igreja parcialmente danificada por bombardeios, que diga-se de passagem, é impressionante. É um dos símbolos de Berlim.

Da Alemanha resta falar da cerveja. É de longe o país que mais consome cerveja por habitante. É muito comum saírem do trabalho e tomar uma cervejinha. Carro também é sinônimo de Alemanha: Volkswagen (volks=povo, wagen=carro), Audi... Passei por um salão onde vi carros que nem sonho em ter. Vi também, nas ruas, um fusquinha azul muito legal com teto com uma espécie de veludo preto. Numa de minhas caminhadas vi uma aglomeração de pessoas e me aproximei para ver o que era. Um grupo de afro-americanos estava prestes a iniciar um show de jazz. Como tocavam e cantavam ! Excelente. Em seguida entrou um político em cena. Começou um discurso em um tom bastante inflamado e obviamente eu não entendia nada, mas como havia algumas pessoas protestando com cartazes anti-nazistas provavelmente deveria ser de ultra-direita. Imaginei Hitler a minha frente e, na dúvida, soltei o balão verde de gás que haviam colocado na minha mão e fiquei observando ele se distanciar em direção ao céu.

P.S.
Com o comentário de um amigo e a pesquisa em um guia descobri que existe uma cidade em Portugal, Évora (pela qual passei, mas não parei) com uma capela revestida internamente com ossos humanos e com a seguinte inscrição: "Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos" !

[14] Você acredita em forças sobrenaturais? - Áustria


Viajar é como um jogo de azar; tem-se que lidar com o ganhar e o perder e, geralmente, no momento menos pensado, recebemos mais ou menos o que esperávamos
Johann Wolfgang Von Goethe

Você acredita ? Eu não. Mas primeiro deixem-me falar de Viena, Áustria. A capital do país onde nasceram Mozart, Freud e Hitler é digna de visita. Possui um dos centros mais ricos que já vi, a concentração de prédios com arquitetura imponente por metro quadrado é incomparável, com uma catedral gótica das mais belas, uma outra romântica magnífica, uma prefeitura magistral, um parlamento neoclássico, um palácio imperial constituído por um complexo de prédios, uma universidade, uma ópera e mais alguns museus ! Mais longe ficam os mais tradicionais cartões-postais de Viena - os castelos, e, ainda, um prédio construído em estilo parecido com os de Gaudi de Barcelona, reformado pelo artista Hundertwasser que pregava o retorno do homem à natureza. Muito legal.

Em geral, na Europa, o sistema de transporte é na base da confiança, ou seja, não há nenhum controle rígido para se tomar o metrô, ônibus, bondes. Não há catracas. Sempre dizem que há fiscais espalhados e que se você não possuir o bilhete quando lhe abordarem, deve-se pagar uma multa salgada. Nunca nenhum fiscal me parou e, em Viena, me passou pela cabeça, pela primeira vez, não comprar os passes. Todavia comprei-os. No próximo metrô que peguei, do nada, um cara se levantou, colocou um crachá em seu casaco e começou a pedir os bilhetes ! Eu fui o segundo ! Logo depois de mim um aparente imigrante húngaro mostrou-lhe um com a hora vencida, e na próxima parada teve que descer com o fiscal que provavelmente iria lhe aplicar a altíssima multa…

Logo que cheguei a Viena liguei para a embaixada brasileira para inquirir sobre os vistos para os países do leste. Tive, anormalmente, um ótimo atendimento - comparado com as outras tentativas de contacto com as embaixadas brasileiras, e recebi ao mesmo tempo uma notícia boa e uma ruim. A ruim era que precisaria de visto para a República Tcheca e não levaria menos que uma semana para obtê-lo e a boa era que não precisaria de visto para Hungria e Polônia. Decidi, então, cortar Praga de meu roteiro, seguir para Cracóvia (ex-capital da Polônia) e de lá para Budapeste, capital da Hungria. Comprei o bilhete, já que meu passe não é válido para a Polônia e após a estadia em Viena parti na noite de terça-feira, às 21:25.

Deitei na minha cama na cabine (fui obrigado a alugar uma, pois não havia assentos) e 5 minutos depois um policial veio pedir meu passaporte. Em poucos segundos me devolveu e pude respirar aliviado, Cracóvia já era um destino certo. Ledo engano, mais 5 minutos depois um outro policial pediu o passaporte de novo. Dessa vez entreguei descompromissadamente. Reproduzo abaixo o diálogo que se seguiu

-You have problems. (Você tem problemas)
-Why ? (Por quê ?)
-You don’t have a visa. (Você não tem um visto)
-But I called the embassy and they told me I wouldn’t need one. (Mas eu liguei para a embaixada e eles me disseram que eu não precisaria de um)
-Which embassy ? (Qual embaixada)
-The Brazilian one. (A brasileira)
-You are Brazilian, you need a visa. (Voce é brasileiro, você precisa de um visto)
Outro cara da cabine : - You need a Czech visa (Você precisa de um visto Tcheco)
Me dirigi ao policial novamente:
-I’m not going to Czech Republic, I’m going to Poland. (Eu não estou indo para a República Tcheca, estou indo para a Polônia)
-If you cross Czech Republic, you need a Czech visa. (Se você atravessa a República Tcheca, você precisa de um visto Tcheco)
-But nobody told me I would need to cross Czech Republic and that I would need a visa because of that. (Mas ninguém me falou que eu precisaria cruzar a República Tcheca e que precisaria um visto para isso)
-I’m sorry, you have to get off at the next station, before cross the border. (Sinto muito, você tem que descer na próxima estação, antes de cruzar a fronteira).

Desapontado e desconsolado, minha única esperança era que ele me esquecesse, o que não aconteceu. Perdi a passagem, ou seja, 700 schilling, $50 ou R$135,00. A fronteira era um fim de mundo. Não havia sequer uma cidade lá e o próximo trem para Viena passaria ali às 5:00 da madrugada. De quem era a culpa ? O cara da embaixada foi muito prestativo e me deu até mais informação do que eu pedi. O cara que me vendeu o bilhete também era muito gente boa e perguntou se eu tinha o visto para a Polônia, que nem era sua obrigação. O policial estava fazendo seu trabalho de acordo com o que prega a diplomacia de seu país. Eu ? Nem passou pela minha cabeça que cruzaria a República Tcheca e que precisaria de um visto para isso. Coisas que acontecem…E o que fazer senão tentar esquecer e tocar o barco. Por umas duas horas fiquei imaginando o que faria. A primeira opção era dar toda uma volta pela Áustria, chegar à Alemanha e entrar na Polônia por lá, mas ir para Budapeste se tornaria inviável. A segunda que pensei foi desistir do leste, ir para Zurique atravessando a belíssima paisagem dos Alpes da Áustria e Suíça. E, por último, a que escolhi, ir para a Hungria e lá decidir com mais calma o que faria, se haveria uma outra forma de chegar à Polônia. Com essa decisão, voltaria para Viena e de lá seguiria para Budapeste.

Chegando no primeiro país do leste europeu que iria visitar, um húngaro me abordou dentro do trem oferecendo-me um mapa e indicando um lugar muito caro para me hospedar. Já estava na defensiva com esse tipo de abordagem e quando alguns minutos mais tarde ele voltou, disse-lhe que iria para um albergue mais barato. Então ele me indicou um outro por quase a metade do preço do primeiro local oferecido. Ainda assim me desvencilhei dele na estação e fui buscar mais informações sobre os outros. Não é que o que ele tinha me mostrado pela segunda vez era a melhor opção ? Cheguei ao albergue e queriam me cobrar 20% a mais (o preço normal) mas por causa daquele cara com o qual estava com um pé atrás, paguei mais barato ! Ao entrar no meu quarto, feito todos os registros necessários, encontrei na minha cama 3000 forints (moeda húngara). Após arrumar minhas coisas, ao sair do quarto, falei para a menina da recepção que havia encontrado aquela soma e que se alguém reclamasse por dinheiro perdido, para me procurar. O dono não apareceu e para minha agradável surpresa, vim a constatar depois que, na verdade, eram 30000 forints, $100, R$270 !! Fui recompensado em dobro ! Você acredita em forças sobrenaturais ?

P.S.
Esqueci de falar na última mensagem que no principal museu de Berlim a exposição em destaque é a do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado: Exodus.

[15] Banho turco na Hungria - Hungria

Percorremos o mundo em busca do que necessitamos para ao final encontrarmos em casa, no nosso regresso.
George Moore

Cheguei à Hungria um tanto quanto inseguro, esperando ser incomodado por muita gente para me carregar para alguma casa. Pensei que a insegurança nas ruas seria grande e ainda que haveria pedintes espalhados por todo lugar. Não foi exatamente o oposto, mas bastou meio dia para perceber que estava com uma imagem totalmente deturpada do antigo segundo mundo, ao menos no que se refere a esse país limítrofe com países da Europa ocidental. Pessoas tentaram me abordar sim, mas não eram insistentes, pareciam que além de ganhar alguns trocados, realmente queriam ajudar. Pedintes vi pouquíssimos, basicamente um em cada lado das quatro principais pontes de Budapeste, todos curvados como o lendário Corcunda de Notre Dame, não sei porque.

A insegurança existe só no que se refere ao trânsito. Os húngaros são um desastre no volante. Não têm a cordialidade do europeu do oeste ou mesmo do norte-americano, de parar o carro caso o pedestre ponha os pés na rua para atravessar. Pelo contrário, ás vezes aceleram e buzinam. Cheguei a ver um acidente e muitas vezes tive que correr para não ser atropelado. Aceleram no amarelo, param na faixa do pedestre quando o sinal fecha, um festival de imprudências que não são muito estranhas para nós brasileiros. Falando de trânsito, ainda se vê muitos Ladas, Laikas, e outros carros muito antigos, resquício da influência soviética, mas também já se vêem carros modernos, resultado do crescente avanço do país em direção ao capitalismo.

Budapeste é dividida em dois distritos: Buda e Peste. Buda é o lado charmoso da cidade, com um centro histórico que foi declarado como Patrimônio Histórico da humanidade pela UNESCO. Lembrei de Ouro Preto lá, caminhando ao lado das casinhas típicas. Existem também dois enormes montes nesse distrito. Um é onde se localiza o Castle Hill, talvez o principal cartão postal da cidade, e também o patrimônio histórico, além de igrejas, miradouros... O outro é onde está a estátua da liberdade húngara e onde se tem a melhor vista de Peste e do Rio Danúbio, com as pontes ligando um distrito ao outro. Algumas das pontes são bastante antigas, mas outras foram reconstruídas após serem bombardeadas durante a guerra.

A vista é realmente bonita. Imaginem-se olhando de cima deste monte e vendo quase toda Peste convergindo para as pontes que atravessam o rio Danúbio e atingem a montanha que se converte em Buda ! Muito confuso ? Esperem as fotos. Peste é o centro comercial, com um trânsito mais eficiente, mas também com algumas atrações como o parlamento parecido com o da Inglaterra, uma catedral, uma sinagoga, alguns museus e um parque. O parque além de uma área verde, um zoológico, um castelo e um parque de diversões possui uma imensa pista de patinação no gelo. Nos finais de semana centenas de pessoas se reúnem neste local para patinar e vale muito a pena, observar a massa de pessoas de todas as idades deslizando em sentido anti-horário. É muito bonito, uma forma de diversão tão diferente para mim, mas que parecia ser tão normal para eles.

Na Hungria definitivamente acabei com minhas "dietas". Fazia tempo que não comia tão bem. E a um custo/benefício excelente. A comida lá é realmente muito barata, mas, lógico, desde que se fuja dos tradicionais restaurantes para turistas montados em pontos estratégicos. Até porque esses restaurantes não devem oferecer um bom serviço (o cliente raramente voltará mesmo) e as comidas nunca são típicas, mas globalizadas.

Uma das coisas mais curiosas que fiz em Budapeste foi ir a um dos seus famosos banhos públicos, herança dos turcos. Em vez de escolher um balneário construído por um hotel no começo do século, também famoso, resolvi ir a um mais tradicional, que funciona em um prédio com centenas de anos, bastante curioso. Basicamente havia algumas salas que funcionavam como sauna à vapor, outras como sauna seca e, no centro, uma piscina com águas termais a uns 30 e poucos graus, na parte do prédio que era mais interessante. Sobre a piscina há uma cúpula sustentada por oito pilastras. Os turistas, como eu, geralmente usam um calção ou tanga, e o povo nativo escolhe entre banhar-se como veio ao mundo ou usar uma tanguinha engraçada que só cobre a parte da frente, realmente hilário.

P.S.
Na Hungria fui abordado duas vezes por fiscais do metrô para verificarem se eu tinha as passagens.

[16] 10 segundos de desespero - Polônia

Viajar com esperança é melhor que chegar
Robert Louis Stevenson


Só o fato de chegar em Cracóvia já merecia uma comemoração. Afinal, depois de todos aqueles incidentes já citados, ainda 36 horas me separaram do momento que deixei Budapeste ao que me registrei no albergue da terra do Papa. Saí da Hungria às 20:10 de domingo, atravessei a Áustria e subi pela Alemanha até deixar para trás as "barreiras" Eslováquia e República Tcheca. Voltei então para leste, também pela Alemanha, até chegar à fronteira com a Polônia e, finalmente, Cracóvia, para então me registrar no albergue às 7:00 da manhã de terça. Ufa ! Se não bastasse a distância e o fato de ter tido que trocar de trem 3 vezes, o trecho da Polônia foi duro, alem do fato de que os trens são de qualidade inferior, me instalei em uma cabine em que 4 pessoas se espremiam de um lado e quatro do outro e que, devido a isso, praticamente não havia espaço para as pernas.

Mas se os trens são inferiores, a cidade de Cracóvia não é. Possui uma atmosfera inigualável, que faz qualquer um viajar no tempo. Capital da Polônia entre 1040 e 1596 ainda é a cidade mais interessante desse país, já que a capital atual, Varsóvia, foi totalmente desfigurada durante a guerra. O centro e arredores são Patrimônio da Humanidade, onde durante a noite o clima fica sombrio, literalmente, já que as luzes são insuficientes para que se enxergue a cara das pessoas. Não bastasse isso havia uma lua completamente cheia no período que estive lá e um sujeito dava um toque ainda mais especial tocando percussão com objetos improvisados, produzindo um som que ecoava pela noite...

Estava fazendo um frio de rachar com um vento cortante e o sol ainda se punha impressionantemente cedo, às 16:00 hs ! Usei mais blusas que em qualquer outro lugar e ainda comprei luvas, se não seria difícil agüentar. Fiquei imaginando como seria quando o inverno chegasse e entendi porque haviam herdado dos soviéticos o hábito de tomar vodka.

Cracóvia, como disse, possui um centro mágico. A praça central Rynek Glowny possui um mercado de produtos artesanais que funciona dentro de um prédio gótico misturado com neoclássico. Ao lado há o que resta da antiga prefeitura e, do outro lado da praça, uma catedral cujo interior tem que ser visitado. Um pouco mais longe, no topo de um morro se encontra o Castelo Wawel, juntamente com uma outra catedral belíssima, abrigando um sino que pode ser ouvido a 10 km de distância.

Caminhando mais um pouco chega-se ao bairro Kazimierz onde funcionava o gueto dos judeus. Ele foi criado em 1335 mas só em 1494 os judeus começaram a ir em massa para lá devido a sua expulsão do centro da cidade. Na verdade, esse bairro antigamente tinha quase autonomia de uma cidade. Mas o gueto ainda não tinha muros e uma parte do bairro possuía também moradores católicos. Só mais adiante é que foi instaurado o verdadeiro gueto que hoje já não existe mais. Restam apenas dois pedaços do muro de três metros de altura que cercava o gueto. Próximo aos dois pedaços de muro está a Fábrica de Schindler. As cenas do gueto que são mostradas no filme foram filmadas no Kazimierz, mas na realidade ocorreram no que já não existe mais. Neste bairro se encontram várias Sinagogas e o maior cemitério judaico antigo não destruído pelos bombardeios, o Remuh. Viviam em Cracóvia cerca de 60.000 judeus, a maioria em Kazimierz; 6000 sobreviveram e no bairro, hoje, só há cerca de 130. A 70 km de Cracóvia está o campo de concentração Auschwitz, mas o relato dessa visita requer uma mensagem separada.

Na ex-capital polonesa me arrisquei ainda mais com a comida que na Hungria, e tinha até vergonha de pagar, dado o preço baixo e minha alta satisfação. Mas a escolha dos pratos exigia muita adivinhação, que na maioria das vezes não funcionava. Mas apesar de não obter o que havia imaginado, a qualidade era sempre ótima. Devido à impaciência da senhora que me atendia passei a anotar o nome dos pratos a partir do menu disposto na parede e a mostrar-lhe, em vez de tentar reproduzir aqueles nomes complicados. A última vez que comi lá fui servido com um nhoque com molho a base de morangos !

Mas que mais me marcou nesses dias em Cracóvia foi um lapso de memória que poderia ter me causado inumeráveis aborrecimentos. Aconteceu no albergue mesmo. Tomei meu rotineiro e relaxante banho após um dia de exaustivas caminhadas e retornei ao meu quarto. Logo ao entrar no quarto fui cumprimentado por um latino que estava sentado em uma das camas. Eu disse oi e perguntei seu nome, e ele surpreendentemente começou a rir. Eu, não entendendo nada, fitei-o mais uma vez em meio àquele quarto não muito claro e só então pude perceber o motivo de tais risadas. Era, coincidentemente, o mesmo mexicano que havia conhecido no ônibus indo para Auschwitz e com o qual compartilhei os primeiros quinze minutos de visita naquele local (depois nos separamos porque ele seguiria um roteiro diferente lá dentro). É válido aqui abrir um parêntese e dizer que naquele mesmo ônibus também aconteceu algo que não pude deixar de comentar com minha mãe no meu telefonema seguinte. Um casal de brasileiros, acompanhados do filho, percebendo que eu era brasileiro quando estava conversando com o mexicano, se apresentaram. Eles então passaram a fazer parte da conversa e qual não foi minha surpresa quando disseram que conheciam uma pessoa que havia se mudado pra minha cidade natal - Machado-MG - uma ex-colega de UFRJ. Seu nome era... Marisa. Nossa, eu conhecia aquela mulher pois minha mãe tinha sido babá de sua filha !!! Tudo isso em um ônibus indo para Auschwitz, na Polônia ! Mas deixemos de devaneios e adentremos na história que me motivou a escrever esse parágrafo. Bem, estava então conversando com o mexicano quando alguém bateu à porta, era o recepcionista do albergue. Começou então a fazer perguntas em um inglês arranhado, que não me arrisco em reproduzir. A fonte itálica de minhas falas e pensamentos é para lembrá-los do estado de pasmo que me encontrava. Tem algum Padilha aqui ? Sim, sou eu. Padilha, Padilha, está tudo certo com você ? Claro ! (o que estaria acontecendo ? – pensava eu). Você não perdeu nada ? Por 5 segundos um turbilhão de acontecimentos passou pela minha cabeça, verifiquei minhas coisas e dei falta na minha pequenina bolsinha que possuía um elástico de forma que sempre andava com ela junto ao corpo, sob as roupas. Lá estava tudo: cartão de crédito internacional, passaporte, todos os meus dólares, carteirinha internacional de estudante, carteira de identidade, enfim tudo que estava junto de mim 23 horas e 40 minutos por dia ! Sim, porque por apenas 20 minutos eu retirava aquela “extensão do meu corpo” para tomar banho. Tomar banho ! Esqueci-a no banheiro ! Meu Deus ! Acharam-na, roubaram todo o dinheiro e deixaram os documentos em algum lugar ! Estava tudo acabado...
– Padilha, você é um cara de muita sorte, acharam suas coisas no banheiro e as entregaram na recepção. Para um polonês aquele dinheiro seria o dinheiro do trabalho de mais de um ano. E o senhor sabia que naquele instante ele se personificava em meu herói. Àquela altura eu estava completamente pálido e minhas emoções tinham variado do extremo sentimento de desespero à exacerbada sensação de alegria, em questão de segundos. Se tivesse problema de coração e se fosse um pouco mais velho com certeza teria tido um infarto. Quase beijei aquela figura, retomei meus pertences e ainda fiquei mudo por alguns minutos para a alegria daquele mexicano que tinha assistido toda a cena e mais uma vez tinha motivo para rir...

P.S.
Vim a descobrir como hustlers (pessoas que abordam turistas em busca de alguma vantagem) do tipo que me abordou em Marrocos aprendem inglês. Fingem-se de viajantes e tornam-se amigos de norte-americanos. Depois de rodar Marrocos aprendendo inglês com eles, põem algo para dormir em um lanche, oferem-no ao “amigo” e então, após a vítima cair no sono, roubam tudo o que podem e somem.

[17] Arbeit Macht Frei? - Polônia


O mundo é um livro, e aqueles que não viajam
lêem apenas uma página. Saint Augustine


Arbeit Macht Frei. O trabalho liberta. Com essa frase irônica, disposta sobre o portão de entrada, os prisioneiros eram recepcionados em Auschwitz. O campo de concentração onde ocorreu o maior genocídio humano (nunca tanta gente foi assassinada em um espaço tão curto de tempo - 1,5 milhão) fica a 70 km de Cracóvia e são na verdade dois. O segundo campo é denominado Auschwitz II ou Birkenau e foi construído algum tempo depois do primeiro, a 3 km do mesmo. A palavra Auschwitz é uma variação alemã para a palavra em polonês Oswiecim que é o nome da cidade aos arredores do campo.

Auschwitz é sempre relacionado aos judeus devido ao grande número de pessoas mortas, cerca de 90% dos 1,5 milhão, mas o número de poloneses católicos mortos se assemelha ao de poloneses judeus mortos, em torno de 70.000. Parece um tanto quanto insensível falar de "cerca de", "em torno de" quando se trata de humanos mortos, mas os números não são concretos porque a maioria das pessoas já chegava morta ao campo, sem nenhum registro, o que dificulta as estimativas. Além de poloneses, judeus de todo o mundo foram mortos neste local, assim como prisioneiros de guerra soviéticos e ciganos.

Existe também um terceiro campo de concentração - Monowitz ou Auschiwitz III - mas este é mais distante e de menor porte. Os dois primeiros foram transformados em enormes museus mórbidos: enquanto no primeiro se concentra mais a parte documental, o segundo pode não ser recomendado aos mais sensíveis. Restos de quatro crematórios e câmaras de gás, a sombria plataforma ferroviária, em perfeito estado de conservação, por onde o trem chegava e era feita a seleção de deportados, barracas de concreto e madeira onde viviam os reclusos até a morte; portas de entrada, cercas elétricas e torres de vigilância podem ser visitadas.

As pessoas não eram mortas somente nas câmaras de gás. Também morriam de fome e esgotamento já que trabalhavam excessivamente e se alimentavam mal (café da manhã: 1/2 litro de café, almoço: 1 litro de sopa sem carne com legumes podres, janta: pão negro com 20 a 30 gramas de salsicha, margarina ou queijo); ficavam doentes devido às péssimas condições sanitárias (conviviam com ratos e insetos); pelo progressivo enfraquecimento unido a pouca roupa diante do inverno rigoroso (e nunca as trocavam ou lavavam); por experimentos científicos; castigados; e, ainda, fuzilados ou enforcados. Quando chegavam ao campo eram comunicados pelo chefe que "haviam chegado ao campo de concentração com uma única saída, a chaminé do crematório". Muitas vezes a distância que separava os deportados de outros países até Auschwitz podia superar os 2400 km. Percorriam todo esse caminho em vagões de carga, espremidos uns aos outros e sem alimentação, uma viagem que durava de 7 a 10 dias. Por isso, quando abriam os vagões, muitos já estavam mortos - na sua maioria velhos e crianças - e os demais exaustos. Os 25-30% mais fortes eram selecionados para o trabalho e os outros conduzidos diretamente às câmaras de gás, iludidos com a história de que iriam "tomar um banho". O último "banho", porque dos chuveiros não saía água, mas gás. Cerca de 2000 pessoas eram mortas de uma vez com 5 a 7 kg de gás Zyklon B em no máximo 20 minutos. Dos cadáveres eram então retirados os dentes de ouro, jóias e objetos valiosos, os cabelos eram cortados e então eram conduzidos aos crematórios ou fossos de incineração.

Quando o fim da guerra se fazia iminente, os SS nazi, como eram chamados os servidores do nazismo, retiraram os objetos mais valiosos dos armazéns onde eram mantidos objetos dos presos, e tocaram fogo. Desmoronaram os crematórios e câmaras de gás assim como muitas barracas tentando remover as evidências das atrocidades cometidas, mas como se pode ver no museu, muito foi preservado.

Isso tudo parece a sinopse de um roteiro de um filme macabro, cujo cenário visitei, mas não é. O roteirista, Hitler, suportado por expectadores que o apoiavam, fez disso realidade. Hoje a opressão é mais disfarçada, o inimigo não pode ser personalizado e nem o oprimido generalizado como pertencente a uma religião, grupo étnico ou região onde habita, mas o número continua alarmante e o apoio representativo. Que em um futuro próximo isso tudo também seja lembrado, (quiçá) por nossos filhos e netos, como coisa do passado, objetos de museu.

[18] Papa ao alcance de um toque - Itália

A viagem é o retorno. Tao saying

Minha estadia em Roma foi totalmente atípica. Possuo uma tia, Luza, que dedica sua vida a atividades religiosas/altruístas e que, coincidentemente, estava na Itália fazendo um curso. Logo que cheguei à Roma liguei para o Brasil para confirmar se ela estava na capital da Itália e pegar seu telefone. Para minha sorte ela estava, liguei para ela que prontamente me convidou para permanecer aqueles dias no hotel que as freiras mantêm.

Me hospedei então de domingo a sexta-feira em um quarto com banheiro e além disso tomava o café-da-manhã e ainda almoçava e jantava em uma mesa compartilhada com mais 10 freiras. Tudo de graça. A maioria delas era da Espanha e se comunicavam na língua falada nesse país – o que contribuiu para que eu praticasse o espanhol – mas também havia uma do Congo que falava francês e duas outras que também falavam italiano. Uma delas estava vivendo há 30 anos em Roma e me deu ótimas dicas do que visitar, assim como contava todos os detalhes relacionados a cada ponto turístico, tantos que minha memória era incapaz de reter.

Os cinco dias que permaneci em Roma foram insuficientes para conhecer toda a cidade, mas ainda assim pude visitar as quatro principais basílicas, dentre elas a de São Pedro, a maior do mundo, situada no Vaticano. Vi também os restos do Foro Romano e Termas de Caracala, curiosas ruínas da Roma Antiga; o admirável Panteão; as interessantes praças. Fui também a uma das catacumbas subterrâneas, a de Calisto, que possui galerias de diferentes profundidades. (nteressante como tudo não desmorona). Dizem que Roma subterrânea é um enorme cemitério. Outros locais que gostei foram a Fontana de Trevi, mundialmente conhecida, e celebrizada no filme de Felini “A Doce Vida”; o inigualável Coliseu, onde Nero se deleitava diante do derramamento de sangue de feras e gladiadores; sem falar no rico Museu do Vaticano, com pinturas de Rafael e Michelangelo.

Michelangelo foi uma figura muito singular, dizem que tinha aparência monstruosa e que era muito melancólico. Considerava-se um escultor. Entre suas obras destacam-se Davi, Pietá e Moisés. Entretanto, depois de relutar muito, acaba aceitando, a mando do papa corrente, pintar a Capela Sistina. Leva anos para terminar aquela que seria considerada uma das mais importantes obras com relevância artística, religiosa e histórica. É genial como ele interpreta ,através da pintura, parte da Bíblia, ainda que fosse um trabalho que inicialmente rejeitasse. O trabalho foi herdado como obra obra-prima pela humanidade, mas tragicamente quase deixou seu autor cego, tanta era a quantidade de substâncias químicas que caiam em seu olho quando estava pintando o teto.

No meu terceiro dia em Roma parti rumo ao Vaticano disposto a tirar uma foto do papa. Me disseram que toda quarta-feira ele aparecia em uma janela de um dos prédios próximos à Catedral de São Pedro, no Vaticano, e que vez ou outra ele descia até à praça. Quando cheguei ao Vaticano percebi uma movimentação incomum. Um grande número de pessoas com um papel amarelo na mão (um convite), eram inspecionados antes de ter acesso a uma entrada que levaria a uma área reservada. Percebi que havia um grupo que não possuía tal convite e que, assim, se conseguissem entrar eu também poderia conseguir. Aproximei-me do grupo e avançamos juntos lentamente. Passamos pelo detector de metais e quando os guardas suíços pediram pelo convite, aquele que parecia ser o líder do grupo, um americano, começou a explicar algo que não pude escutar devido a distância. O guarda reprovou com a cabeça mas deixou-os entrar, digo, deixou-nos... Caminhamos um pouco e então entramos em um enorme salão onde já havia no mínimo umas mil pessoas. Logo começaram a explicar em dez línguas diferentes o que fariam, ao mesmo tempo em que muitas pessoas dirigiam seu olhar para o centro do salão na parte de trás. Entre a multidão um corredor isolado se estendia desde o fundo do salão até uma parte mais elevada na frente. Quando acabaram de explicar o que fariam houve uma movimentação em direção ao corredor central. Não hesitei em fazer o mesmo e, já que estava na parte de trás, onde não havia tanta gente, avancei facilmente e quando começaram a subir nas cadeiras me postei de pé em uma, o mais próximo possível. Entre eu e o corredor já não havia mais ninguém. Preparei minha câmera fotográfica e fiquei, como todos, esperando ansioso. Será que o papa surgiria ali, bem diante de meus olhos a um metro de distância ? Sim, surgiria. Cinco minutos depois, lá aparecia ele em uma versão simplificada de papa-móvel, com alguns guardas ao seu redor. Os flashes das câmeras eram incessantes, assim como o da minha quando ele passou exatamente à minha frente. Foi muito emocionante. Vez ou outra ele parava e beijava crianças e, depois de percorrer todo o corredor, após terminar de subir com muita dificuldade alguns degraus de uma escada com a ajuda de um corrimão móvel, foi muito aplaudido. Está muito velho e quando começou a falar se tornou evidente que não lhe restam muitos mais anos de vida. Finalizada sua primeira fala, com minha missão muita bem cumprida, deixei o salão ainda afetado pela energia emanada por aquele simpático senhor de valentia exemplar.