quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

[16] 10 segundos de desespero - Polônia

Viajar com esperança é melhor que chegar
Robert Louis Stevenson


Só o fato de chegar em Cracóvia já merecia uma comemoração. Afinal, depois de todos aqueles incidentes já citados, ainda 36 horas me separaram do momento que deixei Budapeste ao que me registrei no albergue da terra do Papa. Saí da Hungria às 20:10 de domingo, atravessei a Áustria e subi pela Alemanha até deixar para trás as "barreiras" Eslováquia e República Tcheca. Voltei então para leste, também pela Alemanha, até chegar à fronteira com a Polônia e, finalmente, Cracóvia, para então me registrar no albergue às 7:00 da manhã de terça. Ufa ! Se não bastasse a distância e o fato de ter tido que trocar de trem 3 vezes, o trecho da Polônia foi duro, alem do fato de que os trens são de qualidade inferior, me instalei em uma cabine em que 4 pessoas se espremiam de um lado e quatro do outro e que, devido a isso, praticamente não havia espaço para as pernas.

Mas se os trens são inferiores, a cidade de Cracóvia não é. Possui uma atmosfera inigualável, que faz qualquer um viajar no tempo. Capital da Polônia entre 1040 e 1596 ainda é a cidade mais interessante desse país, já que a capital atual, Varsóvia, foi totalmente desfigurada durante a guerra. O centro e arredores são Patrimônio da Humanidade, onde durante a noite o clima fica sombrio, literalmente, já que as luzes são insuficientes para que se enxergue a cara das pessoas. Não bastasse isso havia uma lua completamente cheia no período que estive lá e um sujeito dava um toque ainda mais especial tocando percussão com objetos improvisados, produzindo um som que ecoava pela noite...

Estava fazendo um frio de rachar com um vento cortante e o sol ainda se punha impressionantemente cedo, às 16:00 hs ! Usei mais blusas que em qualquer outro lugar e ainda comprei luvas, se não seria difícil agüentar. Fiquei imaginando como seria quando o inverno chegasse e entendi porque haviam herdado dos soviéticos o hábito de tomar vodka.

Cracóvia, como disse, possui um centro mágico. A praça central Rynek Glowny possui um mercado de produtos artesanais que funciona dentro de um prédio gótico misturado com neoclássico. Ao lado há o que resta da antiga prefeitura e, do outro lado da praça, uma catedral cujo interior tem que ser visitado. Um pouco mais longe, no topo de um morro se encontra o Castelo Wawel, juntamente com uma outra catedral belíssima, abrigando um sino que pode ser ouvido a 10 km de distância.

Caminhando mais um pouco chega-se ao bairro Kazimierz onde funcionava o gueto dos judeus. Ele foi criado em 1335 mas só em 1494 os judeus começaram a ir em massa para lá devido a sua expulsão do centro da cidade. Na verdade, esse bairro antigamente tinha quase autonomia de uma cidade. Mas o gueto ainda não tinha muros e uma parte do bairro possuía também moradores católicos. Só mais adiante é que foi instaurado o verdadeiro gueto que hoje já não existe mais. Restam apenas dois pedaços do muro de três metros de altura que cercava o gueto. Próximo aos dois pedaços de muro está a Fábrica de Schindler. As cenas do gueto que são mostradas no filme foram filmadas no Kazimierz, mas na realidade ocorreram no que já não existe mais. Neste bairro se encontram várias Sinagogas e o maior cemitério judaico antigo não destruído pelos bombardeios, o Remuh. Viviam em Cracóvia cerca de 60.000 judeus, a maioria em Kazimierz; 6000 sobreviveram e no bairro, hoje, só há cerca de 130. A 70 km de Cracóvia está o campo de concentração Auschwitz, mas o relato dessa visita requer uma mensagem separada.

Na ex-capital polonesa me arrisquei ainda mais com a comida que na Hungria, e tinha até vergonha de pagar, dado o preço baixo e minha alta satisfação. Mas a escolha dos pratos exigia muita adivinhação, que na maioria das vezes não funcionava. Mas apesar de não obter o que havia imaginado, a qualidade era sempre ótima. Devido à impaciência da senhora que me atendia passei a anotar o nome dos pratos a partir do menu disposto na parede e a mostrar-lhe, em vez de tentar reproduzir aqueles nomes complicados. A última vez que comi lá fui servido com um nhoque com molho a base de morangos !

Mas que mais me marcou nesses dias em Cracóvia foi um lapso de memória que poderia ter me causado inumeráveis aborrecimentos. Aconteceu no albergue mesmo. Tomei meu rotineiro e relaxante banho após um dia de exaustivas caminhadas e retornei ao meu quarto. Logo ao entrar no quarto fui cumprimentado por um latino que estava sentado em uma das camas. Eu disse oi e perguntei seu nome, e ele surpreendentemente começou a rir. Eu, não entendendo nada, fitei-o mais uma vez em meio àquele quarto não muito claro e só então pude perceber o motivo de tais risadas. Era, coincidentemente, o mesmo mexicano que havia conhecido no ônibus indo para Auschwitz e com o qual compartilhei os primeiros quinze minutos de visita naquele local (depois nos separamos porque ele seguiria um roteiro diferente lá dentro). É válido aqui abrir um parêntese e dizer que naquele mesmo ônibus também aconteceu algo que não pude deixar de comentar com minha mãe no meu telefonema seguinte. Um casal de brasileiros, acompanhados do filho, percebendo que eu era brasileiro quando estava conversando com o mexicano, se apresentaram. Eles então passaram a fazer parte da conversa e qual não foi minha surpresa quando disseram que conheciam uma pessoa que havia se mudado pra minha cidade natal - Machado-MG - uma ex-colega de UFRJ. Seu nome era... Marisa. Nossa, eu conhecia aquela mulher pois minha mãe tinha sido babá de sua filha !!! Tudo isso em um ônibus indo para Auschwitz, na Polônia ! Mas deixemos de devaneios e adentremos na história que me motivou a escrever esse parágrafo. Bem, estava então conversando com o mexicano quando alguém bateu à porta, era o recepcionista do albergue. Começou então a fazer perguntas em um inglês arranhado, que não me arrisco em reproduzir. A fonte itálica de minhas falas e pensamentos é para lembrá-los do estado de pasmo que me encontrava. Tem algum Padilha aqui ? Sim, sou eu. Padilha, Padilha, está tudo certo com você ? Claro ! (o que estaria acontecendo ? – pensava eu). Você não perdeu nada ? Por 5 segundos um turbilhão de acontecimentos passou pela minha cabeça, verifiquei minhas coisas e dei falta na minha pequenina bolsinha que possuía um elástico de forma que sempre andava com ela junto ao corpo, sob as roupas. Lá estava tudo: cartão de crédito internacional, passaporte, todos os meus dólares, carteirinha internacional de estudante, carteira de identidade, enfim tudo que estava junto de mim 23 horas e 40 minutos por dia ! Sim, porque por apenas 20 minutos eu retirava aquela “extensão do meu corpo” para tomar banho. Tomar banho ! Esqueci-a no banheiro ! Meu Deus ! Acharam-na, roubaram todo o dinheiro e deixaram os documentos em algum lugar ! Estava tudo acabado...
– Padilha, você é um cara de muita sorte, acharam suas coisas no banheiro e as entregaram na recepção. Para um polonês aquele dinheiro seria o dinheiro do trabalho de mais de um ano. E o senhor sabia que naquele instante ele se personificava em meu herói. Àquela altura eu estava completamente pálido e minhas emoções tinham variado do extremo sentimento de desespero à exacerbada sensação de alegria, em questão de segundos. Se tivesse problema de coração e se fosse um pouco mais velho com certeza teria tido um infarto. Quase beijei aquela figura, retomei meus pertences e ainda fiquei mudo por alguns minutos para a alegria daquele mexicano que tinha assistido toda a cena e mais uma vez tinha motivo para rir...

P.S.
Vim a descobrir como hustlers (pessoas que abordam turistas em busca de alguma vantagem) do tipo que me abordou em Marrocos aprendem inglês. Fingem-se de viajantes e tornam-se amigos de norte-americanos. Depois de rodar Marrocos aprendendo inglês com eles, põem algo para dormir em um lanche, oferem-no ao “amigo” e então, após a vítima cair no sono, roubam tudo o que podem e somem.

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